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Mostrando postagens de setembro, 2020

Um conto de Edelson Nagues

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Lia e Bia  Como se não bastasse eu ter que aguentar essa safada da Bia transando embaixo do meu nariz, literalmente, e ainda por cima com esse odiento do Gaspar, agora descubro que a cretina está armando pra mim, querendo me matar . Sim, me matar, porque a cirurgia vai sacrificar uma de nós duas, embora ela negue isso. Mas tenho certeza de que essa dissimulada está dando um jeito pra que a cabrita expiatória seja eu, lógico. “O médico disse que os novos exames mostraram que dá pra separar os órgãos sem prejuízo nem pra mim nem pra você. Menos o coração... Um deles é atrofiado e não aguentaria sozinho a carga de um corpo. Por isso, uma de nós vai precisar de um transplante.” Pois é, transplante... É aí que mora o perigo. Adivinhe quem vai depender da porra de um coração novo. E o doador, como encontrar? E ainda tem o risco de rejeição... Por isso ela tratou logo de seduzir o idiota, dono dessa espelunca falida com o irônico nome de Gran Circo Mundial, que vai bancar a operação. Os dois

Quatro poemas de Noélia Ribeiro

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ELIOTEMPO O tempo futuro de Eliot cinge passado e presente. Não pressupõe a espera, esse monstro devorador das noites e das intuições. O futuro aprisiona a todos como se fôssemos ladrões da hora encarcerada na caixa de aviamentos. Que desenho faremos com a linha obscura que atravessa as veias do calendário? Pagaremos para ver a costura  do tempo na malha do nada? O futuro mostra-se muito caro. FOME atirou as moedas do almoço (pela volta de seu homem) no abastado e mágico poço e foi trabalhar com fome I CHING EM 2020 Pelo olho mágico, vejo o teto encostar na cabeça dos velhos em genuflexão; o cansaço de nada vingar-se dos jovens que violam as saídas de emergência. Avizinho-me do sonho e parto, com as três moedas do I Ching, no ímpeto de desvendar o hexagrama em tuas costas. A raposa atravessa a grande água. Os corpos celestes movimentam-se. Pelo olho mágico, tu me vês atrás da porta. O mundo sem sentimento perdoa nosso inviolável abraço antigo. As moedas ficaram no poço. O desejo, comig

Um poema inédito de Matheus Guménin Barreto

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  Esboços nº 2   chiam os dedos n’água na língua fresca d’água servidão canina amorosa daquilo que passa e não se move (poema inédito) Matheus Guménin Barreto (1992- ) é poeta e tradutor mato-grossense. É autor dos livros de poemas A máquina de carregar nadas (7Letras, 2017), Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (Carlini & Caniato, 2018) e Mesmo que seja noite (Corsário-Satã, 2020). Doutorando da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade de Leipzig na área de Língua e Literatura Alemãs - subárea tradução -, estudou também na Universidade de Heidelberg. Teve poemas seus traduzidos para o inglês, o espanhol e o catalão; publicados em revistas no Brasil, na Espanha e em Portugal; e integrou o Printemps Littéraire Brésilien 2018 na França e na Bélgica a convite da Universidade Sorbonne. Imagem: Kazimir Malevich (Kiev, 23/02/1879 - São Petersburgo, 15/05/1935)

Cinco poemas de Luciana Barreto

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CONCHA   Nem sempre a palavra comparece e se verte em poesia (melancólica toada) Por vezes, esconde-se silente faz-se recôndita, grave guardadora de sustos e mundos   Nem sempre a palavra nos habita em seu frêmito irrequieto (incontido) Por vezes – ancestral – vela seu sono em torres de sal-luas-areia e ali mesmo se confunde (e se refaz) naquele braço vibrátil de mar   Nem sempre a palavra pode ser dita mas – de todo modo – inscreve-se e impossível (imemorial) rasura seu grifo em sua pele de pedra, em seu mamilo de flor. Assim a concha cumpre o que lhe cabe: o segredo pétreo (e delicado) dos amantes.       SETEMBRO   Enquanto espero tudo à volta se move lentamente e o espelho rebate meu rosto difuso os olhos graves pairam estáticos o sorriso (por ora) tremula ainda tímido   Enquanto espero imagens absurdas evolam-se aéreas a sereia flutua em suas vestes ciganas as cigarras rebentam mais tímpanos de vidro os ventos

Cinco poemas e Tiago D. Oliveira

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i. é pelos pés de meu avô que entendo a vida. morto de cima de nove décadas esculpidas nas rachaduras das solas duras, naquele mesmo quarto de estreitos e sonhos. caminho nos cascos a figurar seu povo, na herança do sangue no olho que o eco de sua voz ainda vive. é pelos pés do morto, numa cama de pau, que vejo a luz do dia chegar. o choro, a reza, a morrinha de paz que fica       ii. meu pai chegou à capital menino. de domingo a domingo perdeu o que hoje não consegue mais lembrar. veio para tentar a vida e ficou – foram as primeiras frases que li naquelas solas duras de pés juntos, como os de quem reza. era o título de um texto que continuava – depois fui eu a partir para Lisboa em busca da manilha e o libambo que idealizei. ecos em silêncio vindos de outra existência, idas de 1800, ou não, ou de um call center , atendendo às ligações e sendo mandando de volta a cada três minutos, recebendo ecos de outras partidas. quando meu pai veio pa