Cinco poemas e Tiago D. Oliveira
i.
é
pelos pés de meu avô que entendo a vida.
morto
de cima de nove décadas esculpidas
nas
rachaduras das solas duras, naquele
mesmo
quarto de estreitos e sonhos.
caminho
nos cascos a figurar seu povo,
na
herança do sangue no olho
que
o eco de sua voz ainda vive.
é
pelos pés do morto, numa cama de pau,
que
vejo a luz do dia chegar.
o
choro, a reza, a morrinha de paz que fica
ii.
meu
pai chegou à capital menino. de domingo
a
domingo perdeu o que hoje não consegue mais lembrar.
veio
para tentar a vida e ficou – foram as primeiras frases
que
li naquelas solas duras de pés juntos, como os de quem reza.
era
o título de um texto que continuava – depois fui eu
a
partir para Lisboa em busca da manilha e o libambo que idealizei.
ecos
em silêncio vindos de outra existência, idas de 1800, ou não,
ou
de um call center, atendendo às
ligações e sendo mandando de volta
a
cada três minutos, recebendo ecos de outras partidas.
quando
meu pai veio para a capital tinha a metade de mim,
a
outra descobri quando retornei de Portugal.
há
mais ou menos quarenta anos ele chegava,
após
quatro eu voltei para o Brasil.
as
rachaduras nas solas duras de meu avô
escreveram
estas palavras também.
vii.
antes de ser enterrado, meu
avô foi velado sobre a mesa.
as veias secavam o movimento
dentro do corpo envolto
pelo lençol branco que
deixava os pés serem iluminados.
nossos caminhos pulsando na
terra novamente, desde
o sangue e suor derramados
até aqui, fluindo painho e eu,
um rio: Manezinho da
mumbuca, Paraguaçu água grande,
unos, em prece e quermesse,
pelo povo,
bebendo e comendo os seus
corpos.
as veias secas de meu avô, o
rio que leva à vida,
os pés cravados sem escolha,
nem conhecimento.
xxxv
vii.
quando meu avô morreu o que fazia meu pai
talvez dormisse cansado de
um dia repetido
há decadas ou se perdesse em
algum sonho
não sei não me lembro talvez
tenha ele morrido
também quando o sol
encontrou o seu rosto
ou apenas tenha ligado para
mim às 8 horas
de distância de seu tato
sobre a dor a flor
meu pai nunca soube chorar
deixava as lágrimas
sair quando não conseguia
mentir a carne
meu avô era o deitar delas e
a voz embargada
quando entrávamos nos passos
para a rodoviária
eu e minha irmã éramos o seu
beijo mais doce
minha mãe a sua maior e mais
bonita confiança
meu pai sempre será o poema
para cada filho o vô grafou
um livro em seu corpo
suas rugas seus versos
livres cheios de motivo
para a conduta da paz de toda
fé era tradutor
de si mesmo escrevendo sobre
nossas memórias
um prognóstico corrompido
pelo afeto
quando meu avô morreu eu não
puder entrar
naquele avião naquele
cemitério naquele caixão
caminhar em seus pés era a
única forma de abraçá-lo
novamente tocar o seu riso
de criança a sua voz segura
quando meu avô morreu já não
consigo lembrar
somente sinto seu ser em um
vão de vida sem chorar
xxxv.
viii.
em menino meu pai e eu
andávamos numa barraforte
na tardinha para o pão
vermelha como a sorte
de quem anda na tarde
em fim e não arde
com raios no coração
guardo cada pedalada
de nossas viagens
como livre pegada
para a logos grafada
durante a badalada
última daquela noite
de um antigo verão
guardo meu pai moço
com um olhar primaveril
levando na algibeira
de meu avô o rosto
tão moço quanto
no exato momento
que do mato partiu
guardar é a nossa religião
Tiago D. Oliveira nasceu em 1984, em
Salvador-BA, graduado e mestrando em Letras pela UFBA, tendo
passado pela UNL (Portugal). Tem poemas publicados em blogs, portais, revistas
e jornais especializados no Brasil, Portugal e Espanha. Participou também de
antologias no Brasil e em Portugal. Publicou Distraído, poesia (Editora Pinaúna, 2014), Debaixo do vazio, poesia (Editora Córrego, 2016), Contações, poesia (Editora Patuá, 2018)
e As solas dos pés de meu avô, poesia
(Editora Patuá, 2019). Escreve para o portal literário Letras In.Verso e
Re.Verso.
Contatos:
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Imagens: Ligia de Medeiros
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