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Mostrando postagens de agosto, 2020

Uma ficção de Sérgio Tavares

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Humanos     Para Alberto Bresciani     Enfim, o mar. A imensidão metálica predominando além da faixa branca. Desnudo meus pés e sinto a areia morna, a brisa que veleja minha roupa até a arrebentação. Tiro a máscara e me sento. Aspiro o frescor salino. As ondas cabeceiam o raso, derramando franjas de espuma que ardem meus dedos. Fixo a vista na maré e, de repente, noto uma mancha forçando o elástico da superfície marinha. Uma dança de duas baleias a poucos metros de mim. Fantasmam suas toneladas no turvo profundo sem gravidade, que torna colossos lentos e leves. É um momento mágico de retomada representado na liberdade nunca subtraída daqueles animais. O mundo não era um perigo, pois lhes faltavam humanidade. Então ouço passos. Olho ao redor e vejo que pessoas se aproximam, sem proteção. Formam uma corrente, lado a lado do meu eixo, braço a braço do meu corpo. Absolvidos do distanciamento, observam a cena, mútuos e fascinados. Daí a cauda de uma

Um conto de Leonardo Almeida Filho

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O Capador   Pode perguntar por aí a quem quiser e vão lhe confirmar. Todo mundo dessas bandas conhecia o sujeito. Conhecia de vista, pois Zé Firmino era homem de poucas palavras, um bruto com pouca história. Pela profissão que tinha, e que todos comentavam ao pé da orelha, com medo, até que se mostrava muito, pois era sempre possível encontrá-lo no bar do Peixoto, na esquina da 11 de Setembro. Não estivesse por ali, era só bater na casa dele. Não tinha erro. Não se escondia de ninguém. Mas isso foi antes, bem antes de ele ganhar fama e se tornar lenda por estas bandas. Desapareceu, virou um fantasma que metia medo em todo mundo. Seu paradeiro tornou-se um mistério. O que se sabe é que ele levou muita gente para o outro lado. Era um cabra frio. Dois olhos gelados que quando grudavam na gente dava um arrepio ruim. E é curioso notar que ele até que não tinha a cara feia, era bem apessoado, imberbe, traços finos, quase femininos, o que aumentava ainda mais a curiosidade: de onde vinha

Cinco poemas de Artur Gomes

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ind/gesta uma caneta pelo amor de deus uma máquina de escrever uma câmera por favor quero um computador nem que seja pós moderno vamos fazer um filme vamos criar um filho deixa eu amar a lídia que a mediocridade desta idade mídia não coca cola mais nem aqui nem no inferno inventário   come vento menina come vento não há mais metafísica no mundo  do que comer vento tem de todos os sabores amargo meio/amargo chocolate de   café sabe como é em meio a tanta crise  a gente inventa o vento que se quer   tempo poético o tempo é o senhor dos meus ponteiros de músculos relógio oculto no in/cons/ciente o tempo nos olhos daquela viagem a paisagem  caminho de pedras  o cenário vale dos vinhedos o tempo guardo em segredo como uma jura secreta na íris dos olhos dela na face oculta da noite na retidão clara do dia como um concha na areia o tempo mar de espumas sargaço algas noturnas  a carne do corpo também  o vinho do

Dois contos de Krishnamurti Góes dos Anjos

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Efeito Borboleta Ele abre a loja preocupado, agoniado, aflito. Tem de pagar um extra ao contador que faz artimanhas para sonegar os impostos mensais da loja. Precisa também ter em caixa dinheiro vivo para eventuais propinas para a fiscalização da Prefeitura ou da Secretaria da Fazenda. Tem de ser aos poucos. Vou agora mesmo remarcar o preço daquelas bolsas Louis Vuitton fabricadas no Paraguai. Cem reais em cada uma, para começar, está razoável. Duas horas depois, uma madame, muito afetada e escandalizada com o valor que lhe pedem pela bolsa, paga assim mesmo, exige nota fiscal e sai da loja pensando: Vai sobrar mesmo para a diarista. Peço a ela paciência. Digo que as coisas estão difíceis, que estamos fazendo das tripas coração para mantê-la lá em casa. E ainda peço e recomendo discrição absoluta. No fim do mês, acertamos tudo. A Maria, que está ansiosa na casa da patroa esperando o pagamento da semana, ao saber do adiamento, primeiro fica chateada e depois, aborrecida, se atrapalha