Um conto de Edelson Nagues



Lia e Bia 


Como se não bastasse eu ter que aguentar essa safada da Bia transando embaixo do meu nariz, literalmente, e ainda por cima com esse odiento do Gaspar, agora descubro que a cretina está armando pra mim, querendo me matar. Sim, me matar, porque a cirurgia vai sacrificar uma de nós duas, embora ela negue isso. Mas tenho certeza de que essa dissimulada está dando um jeito pra que a cabrita expiatória seja eu, lógico. “O médico disse que os novos exames mostraram que dá pra separar os órgãos sem prejuízo nem pra mim nem pra você. Menos o coração... Um deles é atrofiado e não aguentaria sozinho a carga de um corpo. Por isso, uma de nós vai precisar de um transplante.” Pois é, transplante... É aí que mora o perigo. Adivinhe quem vai depender da porra de um coração novo. E o doador, como encontrar? E ainda tem o risco de rejeição... Por isso ela tratou logo de seduzir o idiota, dono dessa espelunca falida com o irônico nome de Gran Circo Mundial, que vai bancar a operação. Os dois resfolegando na sem-vergonhice, e o sacana dando um jeito de passar a mão na minha bunda. 

Eu bem que sabia que a Lia não ia concordar. “Já estamos há mais de vinte anos deste jeito, juntinhas, carne e unha... Por mim, continuamos. Pelo menos temos emprego garantido, somos a atração principal, as estranhas, a aberração da natureza...” É verdade que superamos nossas limitações e fazemos contorcionismos inimagináveis até para um corpo só; um amontoado de pernas, troncos e membros dentro de uma caixa diminuta, bicho semivertebrado de duas cabeças... Acontece que não suporto mais esta vida, não aguento mais ter que ficar o tempo todo olhando pra essa cara idêntica à minha, só que numa pessoa tão diferente, como se fosse um daqueles espelhos deformados. Ela acha que não percebi que se aproximou do Tuca, esse filho bastardo do Gaspar, para tramar um golpe contra mim. Aí tem dente de coelho, aposto. O espertinho é quem cuida da grana do circo, é o responsável pelas finanças. Eu já disse pro tonto do meu namorado que esse moleque ainda vai aprontar alguma, se já não estiver aprontando. No mínimo planeja dar um desfalque e se mandar, com essa falsa puritana, assim que se livrarem de mim. E a Lia, essa sonsa, acha que eu não percebo como se insinua pro cretino.

É verdade que me aproximei do Tuca só pra sondar o que a Bia e o Gaspar andam armando. O cara é bem descolado, safo mesmo, e está cheio de segundas e terceiras intenções... “Ok, vou lhe dar a recompensa assim que fizer a sua parte.”, sussurrei ao seu ouvido, pra que ela não ouvisse. Os olhos dele brilharam. E até agora ele está se saindo bem. Conseguiu engabelar o velho e descobrir os planos dos dois, e era o que eu suspeitava. Mas há remédio pra tudo. Coloco umas gotas caprichadas no suco da minha sócia, e a parte dela vai secar como um ramo de trepadeira, que é o que ela é, cortado no talo. Ainda mais neste clima de deserto, que resseca até a alma da gente. As radiografias mostraram dois corações independentes, mas interligados por uma artéria. O meu tem o dobro do tamanho do outro, e a espertinha quer se apossar dele e me empurrar um coração qualquer, porque o dela, bichado, não aguenta o tranco sozinho. Quando ela começar a se contorcer, babar e urrar de dor, eu finjo também passar mal, aí o Tuca corre atrás de socorro. Como a parte dela é que vai estar mais prejudicada e o coração maior é o meu, os médicos vão ter que fazer uma cirurgia de emergência e me livrar desse estrupício que tenho carregado por toda esta amaldiçoada vida. É minha chance, agora que estamos aqui, na capital, onde há recursos pra isso, embora nesta cidade-satélite dos diabos, longe daquela maravilha toda que mostram na tevê. 

Está tudo preparado. Será amanhã, mas a idiota não sabe, claro. O Gaspar vai nos dar um sonífero, pra que a Lia não dificulte nossa ida para o hospital. Ele até já contratou uma ambulância. Apareceu um doador compatível, que está em coma há mais de um mês, só sobrevivendo por aparelhos. Parece que um morador de rua atropelado pelo filho de um desembargador. Não saiu nem vai sair nada nos jornais. Um amigo do Gaspar, assessor de um deputado e que conhece o esquema todo, está dando um jeito. Se houver rejeição, problema dela! É bem possível que o novo coração se recuse a uma sobrevida dentro dessa cobra peçonhenta. Já providenciamos tudo. Enquanto a Lia dormia (eu tive que fingir que dormia também), o Gaspar trouxe os documentos para “nós” assinarmos. A assinatura dela ficou perfeita, uma beleza! Pra isso treinei bastante na última semana. “O que você tanto rabisca nessa agenda?”, a curiosa quis saber. “Nada que lhe interesse. E não é agenda, é o meu diário. Escrevo sobre minha vida, meus sonhos.” 

Se vou ser acusada de homicídio, são outros quinhentos. Como poderão me condenar por amputar uma parte de mim? Se alguém que tenha nascido com três braços (E acontece, viu? Teve até um cara que nasceu com duas cabeças fundidas numa só, parece que com dois cérebros, e com personalidades antagônicas. Acho que na Inglaterra, no século passado. O Tuca me mostrou a matéria numa dessas revistas de ciência.), pois é, se alguém com três braços resolve cortar um, ele vai ser processado por lesão corporal, tentativa de homicídio? Claro que não! Aquele pintor famoso, o Van Gogh, não cortou a própria orelha? Ok, a orelha era dele, e ninguém tem nada a ver com isso! Ah, mas o corpo não é seu, é dela... Dela, uma vírgula! É nosso! Os dois corpos são nossos, tanto dela quanto meus. O escroto do Gaspar não pensa assim, quando fica me bolinando enquanto transa com a vagaba? Assim que o Tuca trouxer o remédio, e ele ficou de fazer isso hoje, vou preparar o último lanche de minha querida e inseparável irmãzinha. 

Tenho mesmo um diário, presente da Soraya, nossa madrinha, quando completamos oito anos. Ainda pequenas, recém-chegadas ao circo, morríamos de medo daquela mulher com cara de homem, toda barbada. Mas foi ela quem cuidou de nós, como se fosse nossa mãe. Logo percebemos que era uma pessoa do bem, apesar daquela cara esquisita, com semblante sempre triste. A Lia preferiu um bichinho de pelúcia, que não durou muito tempo. Eu, porém, guardei meu diário com bastante zelo. Nele está resumida toda a minha história – aliás, a nossa história, infelizmente. Reportagens na tevê, matérias em jornais, radiografias, diagnósticos médicos, está tudo registrado ali, colado ou manuscrito. Por onde passamos, a grande atração do circo, o espetáculo vivo! Os dois seres especiais unidos pela vontade de Deus (na verdade, este aborto da natureza, um monstrengo repugnante, como se vê nos olhares curiosos e espantados), as crianças abandonadas no circo pela mãe desalmada, as filhas de ninguém que encontraram abrigo e se revelaram um talento circense... Chega! Tenho direito a uma vida normal, à individualidade, como todo mundo. Quero uma vida só minha, um corpo só meu, com tudo de bom e mau que isso possa trazer. Vou ser eu mesma, finalmente, sem essa sombra opressora. E depois da operação, assim que passar o efeito da anestesia, vou começar imediatamente a escrever uma outra história. Minha verdadeira história, enfim. 











EDELSON NAGUES
é natural de Rondonópolis/MT e radicado em Brasília/DF. Tem contos e poemas publicados em diversas revistas literárias eletrônicas – como Mallarmargens, Germina, Zunái, Ruído Manifesto, Escrita Droide, Literatura & Fechadura, Samizdat, entre outras – e vários textos premiados e/ou selecionados para coletâneas de concursos literários diversos. Publicou os livros Humanos (de contos) e Águas de clausura (de poesia – vencedor do X Prêmio Literário Livraria Asabeça), ambos pela Scortecci Editora, e Palavras para estrangular silêncios (de poesia), pela Editora Patuá. É coautor do CD Anand Rao musica poemas de Edelson Nagues e organizador da antologia Respeitável público – histórias de circo e outras tragédias, Editora Penalux.

Comentários

  1. Instigante, surpreendente, originalíssimo! Captura o leitor para si, ávido para decifrá-lo até o fim! Extraordinário! Grande e talentoso Edelson Nagues, uma salva de palmas!!!

    ResponderExcluir

Postar um comentário