Um conto de Eltânia André









MUTANTES


Perguntar ‘quem sou’ é uma pergunta de escravo;
perguntar ‘quem me chama’ é uma pergunta de homem livre. 
                       Gabriela Llansol



 

Não foi o único caso que espantou o mundo, mas o que mais me comoveu. Tudo começou com o desaparecimento da certidão de nascimento. Todos os cantos e gavetas do apartamento foram revirados pelo avesso, nenhum cartório acusou o possível registro nos anos prováveis de seu nascimento. Ficou em dúvida se adotava a alcunha de Violeta, a cor mais viva; ou Amora, o feminino do verbo amar. No sorteio improvisado, assim que viu a letra V surgir dentro do papel amassado, soube como se chamaria. A sorte estava lançada, não questionou, não reivindicou o segundo lance.

Vizinhos asseguraram que ela trabalhava, há mais de uma década, no departamento financeiro de uma empresa aérea, mas Violeta sequer encontrou a carteira de trabalho, ficou intrigada, pois ninguém lhe telefonou para questionar a ausência. Bateu o cartão de ponto numa segunda-feira às oito da manhã. Foi-se adaptando como pôde à filosofia da empresa, percebeu-se expert no uso da calculadora multifuncional e foi elogiada pelo Diretor Geral, um sujeito que passava boa parte do tempo fazendo palavras cruzadas em japonês [um misto de Roberto Bolaño com Fito Páez].

Leila Diniz apareceu numa manhã ensolarada e lhe garantiu que eram velhas amigas, contou que noutras épocas viveram grandes emoções, A gente era livre, eu falava o que queria, me lixava para a moral e os bons costumes… deixávamos descobertos os seios, transávamos de manhã, à tarde e à noite. A única coisa que eu deveria evitar, me revelou uma cartomante, seria uma viagem para a Austrália e manga com leite.

O Prince da Vila Mariana levou Violeta para o coral com a expetativa de que a ressonância musical a resgatasse de sua completa errância no mundo evocativo das interjeições. Ele sabia que a única réstia de memória lhe chegava por acordes turbulentos que a convocava a cantar e a dançar pelos escombros. O humor de Violeta foi se afunilando, não comia nem dormia bem, a insônia retirava-lhe a possibilidade de que algo lhe fosse pronunciado nos sonhos.

O caso permaneceu semanas na mídia, o país acostumado a se fragmentar em polêmicas e histórias fantasiosas, lançava-se num rol de conjecturas. Houve diversas teorias conspiratórias, três delas mais robustas:

I – Trata-se de uma criminosa violenta, procurada pela INTERPOL por diversos crimes cometidos mundo afora. O mais emblemático se deu no Panamá: ganhou uma bolada num golpe cibernético. raptando dados sigilosos dos computadores de grandes empresas e pediu um resgate bilionário a ser pago em bitcoins. Finge sofrer de uma amnésia galopante como disfarce para não ser reconhecida.

II - Os Estados Unidos avançam numa pesquisa científica de sequestro de dados dos cérebros de pessoas. O alto investimento tem como objetivos, preservar a vida de seus inimigos e reduzir os custos de Guantánamo. Uma releitura de Laranja Mecânica.

III – Avalia-se a possibilidade da perda da identidade como uma sequela rara de infectados pelo novo COVID-19. As pesquisas têm como material principal uma postagem que viralizou nas redes sociais que mostra a foto de uma mulher, suspostamente a tal “Violeta”, em Wuhan tomando uma sopa de asas de morcego – vírus em sua forma primitiva.

Violeta, cansada de tanta babaquice e de tanta caretice, tinha uma única certeza - o mundo estava chato e besta. Sem encontrar uma saída para o seu mal-estar, foi aos poucos se esquivando da ordem geral e redesenhou do jeito que pôde a sua biografia, como uma sonâmbula em noite alta, como uma personagem que se infiltra no romance à revelia do autor. Seus melhores momentos eram junto a Leila Diniz, quando perambulavam por São Paulo, um chopp na Augusta, uma empanada na Vila Madalena ou um almoço grego no Brás. As piadas sarcásticas-filosóficas que contavam depois do conhaque eram vistas como obscenas e ofensivas; chegaram a ser expulsas da tasca La Bodeguita, mas elas não se curvavam e enfrentaram a mediocridade com chistes e pontapés. Sabiam se divertir, eis a inveja que causavam.

Um ex-jogador de futebol, um tal Diego, se apresentou como seu ex-marido, não bastasse o choque que sofreu com a notícia, recebeu uma ligação da Patagônia de uma garota a reivindicando como mãe. Ela teve um ataque de pânico, e após o  “hasta la vista, mamá”, engoliu dois comprimidos de lexotan, dormiu quinze horas seguidas. Sonhou com Lars Von Trier gritando incessantemente, Hei!, hei!, hei!. O eco do chamado atingiu o triângulo da cena final do filme Melancolia, onde ela se encontrava. Acordou assustadíssima e mais insatisfeita com imagem de seu puzzle existencial. Lamentava: mundo chato, mundo besta.

O tempo foi passando e a população, entretida noutras notícias, esqueceu-se de Violeta e dos novos casos que proliferavam pelo país. Ela, então, seguiu no anonimato. A última manchete, se me recordo bem, deu destaque para a sua recusa quando o Ministério Público a convocou para o registro de uma certidão de nascimento no 17º Cartório do Registro Civil.  

Certo dia, ela e a Leila Diniz foram passear no Ibirapuera, quando - do alto falante fixado numa Seringueira - uma melodia, de súbito, despertou algo fundamental em Violeta. Era uma canção da roqueira Rita Lee. Violeta iluminou-se e o contentamento a tanto tempo aguardado veio à tona.  Sei de quem é essa voz. Enfim! Reconheço minha voz, reconheço os silêncios e as pausas. Sou eu quem canta, ouça. Leila Diniz não a contrariou, inclusive notou de súbito que a amiga tinha o mesmo tipo físico da cantora, o mesmo timbre vocal, quase o mesmo corte de cabelo.

Para muitos seria o agravamento da doença. Para ela, a cura.

A alma e o corpo da mulher despertaram da letargia. Quis saber sobre si (ou sobre a Rita Lee, tanto faz), constatou que além de ser uma cantora espetacular, tinha um ótimo astral, era vegetariana, poliglota e conseguia se comunicar com a maioria dos animais - apesar do seu pavor de aranha. Comprou várias peças de roupas no estilo “ovelha negra” - as mais parecidas com os looks dos shows, encheu uma sacola com os principais álbuns da discografia de Lee. Quando colocou para tocar o disco “Fruto Proibido”, de 1975, experimentou algo parecido com o que Proust sentiu quando comeu a famosa madeleine banhada no chá. Ela flutuou sobre a régua do tempo. Foi ao melhor salão de beleza da região para a transformação do visual, os cabelos ruivos lhe deram a ousadia de que precisava, reclamou apenas do corte da franja, o que irritou um pouco o Dusek, cabeleireiro de renome que não suportava ser criticado.

Contratou um advogado para solicitar judicialmente o registro tardio do seu nascimento: Doutor, Violeta foi apenas um recurso para contornar a coisa, foi apenas um nome provisório; eu me chamo Rita, Rita Lee Jones. Nunca mais voltou ao departamento financeiro. Comprou uma guitarra e fez aulas virtuais com um professor canadense. Esticar os dedos acometidos pela artrose foi um misto de tortura e frustração, mas não desistiu e trocou a guitarra por uma gaita.

Não foi difícil descobrir o endereço de seu duplo. A Rita Lee tinha mais o que fazer, mas a atendeu, uns dizem que por educação, outros por piedade. O certo é que a convidou para um bate-papo no jardim. Elas até que se entenderam quando iniciaram uma conversa sobre os coiotes que habitam a fronteira entre o México e os Estados Unidos, logo a seguir embarcaram numa longa viagem metafísica dentro da peça O Rinoceronte, do Ionesco. Na despedia, Violeta constatou: ‘me libertei daquela vida vulgar’. Tenho para mim que este era o chamado: sem as canções todas as vidas se curvam ao opaco dos dias.

Resolveu investir: contratou um aposentado que tocava órgão em igrejas, optou pelo playback, mas era exemplar nas performances, assim fechou um contrato de trabalho com uma churrascaria para tocar nas terças, quintas e sextas; nos outros dias se apresentava em frente ao Parque Mário Covas – gostava quando a nomeavam de artista de rua. Acabou tendo algum reconhecimento local, mais de uma vez foi confundida com a cantora e chegou a dar autógrafos,  ah, e fez um ensaio fotográfico para a matéria “Sósias perfeitas”. Não sobrava muito tempo para o supérfluo, mesmo sendo tão necessário. Por isso, depois de algum tempo, cansada do cheiro de carne tostada da churrascaria e o desrespeito dos clientes cantando o ‘parabéns pra você’ junto à trilha sonora de seu repertório, rompeu definitivamente com a vida de cover.

Nunca mais atendeu o telefonema da filha falsa e do seu dito pai, o Maradona; desculpe o auê – foi com essa frase que, digamos, tirou o seu time de campo. E quando o advogado lhe comunicou que todas as tentativas foram vãs, ela não se abateu, redigiu de próprio punho a sua certidão de (re)nascimento e ainda colocou como marca d’água a capa do álbum “Reza”. Foi acusada de falsidade ideológica, mas não conseguiram solucionar o embate: como enquadrariam o crime se não sabiam qual era a identidade base, ela era uma mutante.

Retornou à casa da Rainha do Rock e lhe contou as suas descobertas: as suas recordações tinham uma trilha sonora e eram inseparáveis. As duas não se largaram mais, foram morar nas proximidades de uma pequena faixa de mata atlântica e por lá conviveram em irmandade com a natureza. O que elas mais gostavam era tirar uma soneca na rede, depois do almoço, ao som do uirapuru vermelho. Andavam, todos os dias, com os cães pela manhã, plantavam orquídeas e crisântemos, se dedicavam à produção de miniaturas de trens ferroviários e avançaram bastante no curso de teatro de marionetes, e atravessarem as noites com conversas intermináveis.

Soube que, numa madrugada de domingo, foram vistas dando um passeio às margens do Lethes. O andarilho de nome Elvis testemunhou quando uma delas seguiu com o barqueiro dentro da densa neblina. Não soube dizer qual delas seguiu rio-a-dentro, mas recorda-se, vagamente, do momento em que o Anjo-Solidão de Piva pousou (ainda indeciso) sobre os ombros da que entrou num táxi na direção leste. 






























Eltânia André Nasceu em Cataguases-MG. Autora dos livros de contos Manhãs adiadas (Dobra Editorial, SP, 2012) e Duelos (Editora Patuá, 2018) e dos romances Para fugir dos vivos (Ed. Patuá, SP, 2015) e Diolindas (Ed. Penalux, SP, 2016, escrito em parceria com Ronaldo Cagiano).





Imagem: Milton Dacosta


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