Um conto de Eltânia André
Não foi o único caso que espantou o mundo, mas o que mais me comoveu. Tudo
começou com o desaparecimento da certidão de nascimento. Todos os cantos e
gavetas do apartamento foram revirados pelo avesso, nenhum cartório acusou o
possível registro nos anos prováveis de seu nascimento. Ficou em dúvida se
adotava a alcunha de Violeta, a cor mais viva; ou Amora, o feminino do verbo
amar. No sorteio improvisado, assim que viu a letra V surgir dentro do papel
amassado, soube como se chamaria. A sorte estava lançada, não questionou, não
reivindicou o segundo lance.
Vizinhos asseguraram que ela trabalhava, há mais de uma década, no
departamento financeiro de uma empresa aérea, mas Violeta sequer encontrou a
carteira de trabalho, ficou intrigada, pois ninguém lhe telefonou para
questionar a ausência. Bateu o cartão de ponto numa segunda-feira às oito da
manhã. Foi-se adaptando como pôde à filosofia da empresa, percebeu-se expert no
uso da calculadora multifuncional e foi elogiada pelo Diretor Geral, um sujeito
que passava boa parte do tempo fazendo palavras cruzadas em japonês [um misto
de Roberto Bolaño com Fito Páez].
Leila Diniz apareceu numa manhã ensolarada e lhe garantiu que eram velhas
amigas, contou que noutras épocas viveram grandes emoções, A gente era livre,
eu falava o que queria, me lixava para a moral e os bons costumes… deixávamos
descobertos os seios, transávamos de manhã, à tarde e à noite. A única coisa
que eu deveria evitar, me revelou uma cartomante, seria uma viagem para a
Austrália e manga com leite.
O Prince da Vila Mariana levou Violeta para o coral com a expetativa de
que a ressonância musical a resgatasse de sua completa errância no mundo
evocativo das interjeições. Ele sabia que a única réstia de memória lhe chegava
por acordes turbulentos que a convocava a cantar e a dançar pelos escombros. O humor
de Violeta foi se afunilando, não comia nem dormia bem, a insônia retirava-lhe
a possibilidade de que algo lhe fosse pronunciado nos sonhos.
O caso permaneceu semanas na mídia, o país acostumado a se fragmentar em
polêmicas e histórias fantasiosas, lançava-se num rol de conjecturas. Houve diversas
teorias conspiratórias, três delas mais robustas:
I – Trata-se de uma criminosa violenta, procurada pela INTERPOL por
diversos crimes cometidos mundo afora. O mais emblemático se deu no Panamá: ganhou
uma bolada num golpe cibernético. raptando dados sigilosos dos computadores de grandes
empresas e pediu um resgate bilionário a ser pago em bitcoins. Finge sofrer de
uma amnésia galopante como disfarce para não ser reconhecida.
II - Os Estados Unidos avançam numa pesquisa científica de sequestro de dados
dos cérebros de pessoas. O alto investimento tem como objetivos, preservar a
vida de seus inimigos e reduzir os custos de Guantánamo. Uma releitura de Laranja
Mecânica.
III – Avalia-se a possibilidade da perda da identidade como uma sequela rara
de infectados pelo novo COVID-19. As pesquisas têm como material principal uma
postagem que viralizou nas redes sociais que mostra a foto de uma mulher,
suspostamente a tal “Violeta”, em Wuhan tomando uma sopa de asas de morcego –
vírus em sua forma primitiva.
Violeta, cansada de tanta babaquice e de tanta caretice, tinha uma
única certeza - o mundo estava chato e besta. Sem encontrar uma saída
para o seu mal-estar, foi aos poucos se esquivando da ordem geral e redesenhou do
jeito que pôde a sua biografia, como uma sonâmbula em noite alta, como uma
personagem que se infiltra no romance à revelia do autor. Seus melhores
momentos eram junto a Leila Diniz, quando perambulavam por São Paulo, um chopp
na Augusta, uma empanada na Vila Madalena ou um almoço grego no Brás. As piadas
sarcásticas-filosóficas que contavam depois do conhaque eram vistas como
obscenas e ofensivas; chegaram a ser expulsas da tasca La Bodeguita, mas
elas não se curvavam e enfrentaram a mediocridade com chistes e pontapés. Sabiam
se divertir, eis a inveja que causavam.
Um ex-jogador de futebol, um tal Diego, se apresentou como seu ex-marido,
não bastasse o choque que sofreu com a notícia, recebeu uma ligação da Patagônia
de uma garota a reivindicando como mãe. Ela teve um ataque de pânico, e após o “hasta la vista, mamá”, engoliu dois
comprimidos de lexotan, dormiu quinze horas seguidas. Sonhou com Lars Von Trier
gritando incessantemente, Hei!, hei!, hei!. O eco do chamado atingiu o
triângulo da cena final do filme Melancolia, onde ela se encontrava. Acordou
assustadíssima e mais insatisfeita com imagem de seu puzzle existencial. Lamentava:
mundo chato, mundo besta.
O tempo foi passando e a população, entretida noutras notícias, esqueceu-se
de Violeta e dos novos casos que proliferavam pelo país. Ela, então, seguiu no
anonimato. A última manchete, se me recordo bem, deu destaque para a sua recusa
quando o Ministério Público a convocou para o registro de uma certidão de
nascimento no 17º Cartório do Registro Civil.
Certo
dia, ela e a Leila Diniz foram passear no Ibirapuera, quando - do alto falante
fixado numa Seringueira - uma melodia, de súbito, despertou algo fundamental em
Violeta. Era uma canção da roqueira Rita Lee. Violeta iluminou-se e o
contentamento a tanto tempo aguardado veio à tona. Sei de quem é essa voz. Enfim! Reconheço
minha voz, reconheço os silêncios e as pausas. Sou eu quem canta, ouça. Leila
Diniz não a contrariou, inclusive notou de súbito que a amiga tinha o mesmo
tipo físico da cantora, o mesmo timbre vocal, quase o mesmo corte de cabelo.
Para muitos seria o agravamento da
doença. Para ela, a cura.
A alma e o corpo da mulher despertaram da letargia. Quis saber sobre si (ou
sobre a Rita Lee, tanto faz), constatou que além de ser uma cantora espetacular,
tinha um ótimo astral, era vegetariana, poliglota e conseguia se comunicar com a
maioria dos animais - apesar do seu pavor de aranha. Comprou várias peças de
roupas no estilo “ovelha negra” - as mais parecidas com os looks dos shows,
encheu uma sacola com os principais álbuns da discografia de Lee. Quando
colocou para tocar o disco “Fruto Proibido”, de 1975, experimentou algo
parecido com o que Proust sentiu quando comeu a famosa madeleine banhada no chá.
Ela flutuou sobre a régua do tempo. Foi ao melhor salão de beleza da região
para a transformação do visual, os cabelos ruivos lhe deram a ousadia de que
precisava, reclamou apenas do corte da franja, o que irritou um pouco o Dusek, cabeleireiro
de renome que não suportava ser criticado.
Contratou um advogado para solicitar judicialmente o registro tardio do
seu nascimento: Doutor, Violeta foi apenas um recurso para contornar a
coisa, foi apenas um nome provisório; eu me chamo Rita, Rita Lee Jones. Nunca
mais voltou ao departamento financeiro. Comprou uma guitarra e fez aulas
virtuais com um professor canadense. Esticar os dedos acometidos pela artrose foi
um misto de tortura e frustração, mas não desistiu e trocou a guitarra por uma gaita.
Não foi difícil descobrir o endereço de seu duplo. A Rita Lee tinha mais
o que fazer, mas a atendeu, uns dizem que por educação, outros por piedade. O
certo é que a convidou para um bate-papo no jardim. Elas até que se entenderam
quando iniciaram uma conversa sobre os coiotes que habitam a fronteira entre o
México e os Estados Unidos, logo a seguir embarcaram numa longa viagem metafísica
dentro da peça O Rinoceronte, do Ionesco. Na despedia, Violeta constatou:
‘me libertei daquela vida vulgar’. Tenho para mim que este era o
chamado: sem as canções todas as vidas se curvam ao opaco dos dias.
Resolveu investir: contratou um aposentado que tocava órgão em igrejas,
optou pelo playback, mas era exemplar nas performances, assim fechou um contrato
de trabalho com uma churrascaria para tocar nas terças, quintas e sextas; nos
outros dias se apresentava em frente ao Parque Mário Covas – gostava quando a
nomeavam de artista de rua. Acabou tendo algum reconhecimento local, mais de uma
vez foi confundida com a cantora e chegou a dar autógrafos, ah, e fez um ensaio fotográfico para a matéria
“Sósias perfeitas”. Não sobrava muito tempo para o supérfluo, mesmo sendo tão
necessário. Por isso, depois de algum tempo, cansada do cheiro de carne tostada
da churrascaria e o desrespeito dos clientes cantando o ‘parabéns pra você’
junto à trilha sonora de seu repertório, rompeu definitivamente com a vida de cover.
Nunca mais atendeu o telefonema da filha falsa e do seu dito pai, o
Maradona; desculpe o auê – foi com essa frase que, digamos, tirou o seu
time de campo. E quando o advogado lhe comunicou que todas as tentativas foram
vãs, ela não se abateu, redigiu de próprio punho a sua certidão de
(re)nascimento e ainda colocou como marca d’água a capa do álbum “Reza”. Foi acusada
de falsidade ideológica, mas não conseguiram solucionar o embate: como
enquadrariam o crime se não sabiam qual era a identidade base, ela era uma
mutante.
Retornou à casa da Rainha do Rock e lhe contou as suas descobertas: as suas
recordações tinham uma trilha sonora e eram inseparáveis. As duas não se
largaram mais, foram morar nas proximidades de uma pequena faixa de mata
atlântica e por lá conviveram em irmandade com a natureza. O que elas mais
gostavam era tirar uma soneca na rede, depois do almoço, ao som do uirapuru
vermelho. Andavam, todos os dias, com os cães pela manhã, plantavam orquídeas e
crisântemos, se dedicavam à produção de miniaturas de trens ferroviários e
avançaram bastante no curso de teatro de marionetes, e atravessarem as noites
com conversas intermináveis.
Soube que, numa madrugada de domingo, foram vistas dando um passeio às
margens do Lethes. O andarilho de nome Elvis testemunhou quando uma delas
seguiu com o barqueiro dentro da densa neblina. Não soube dizer qual delas
seguiu rio-a-dentro, mas recorda-se, vagamente, do momento em que o
Anjo-Solidão de Piva pousou (ainda indeciso) sobre os ombros da que entrou num
táxi na direção leste.
Bom demais!
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