Seis poemas de Maria João Cantinho
Tulcea
Tulcea, que agora se afunda
nos braços da noite, deixa atrás de si
o rumor quieto das águas
e a oscilação calma dos barcos,
numa despedida do verão. Deixo
que a noite invada os rostos
e que a escuridão engula as vozes,
que cantam a nostalgia, sem nome.
Adormecerei neste lugar,
em que uma voz
antiga me desperta,
adormecerei, e pouco a pouco,
o mistério do tempo desvelará
as ocultas formas da noite,
num breve murmúrio do infinito.
Em breve cantarão as aves no porto
esperando-te, enquanto
deslizam velozes, madrugada adentro.
Luminescendo o dia.
Discípulos da madrugada
Que a sombra desça e nos tome
no seu mistério, em que tudo
é passagem e limiar, presença
furtiva e incandescente.
O rio flui e nele se submerge
o teu rosto, a tua voz,
talvez a memória de outros rostos
e de outras vozes
cruzando-se na dobra do tempo
aparentando-se na escuridão,
talvez não sejam senão destroços
de um antigo sonho
ou de uma visão em sobressalto
do eterno.
A Rosa curda
Para Hussein Habash
Talvez julgueis que a sua sombra
se abaterá sobre o sangue
derramado das mulheres curdas.
Elas, que amamentaram
os lobos das montanhas
mais altas, descendo
como demónios, combatendo
hostes assassinas e bárbaras,
velarão dia e noite,
indiferentes ao cansaço
e ao medo.
Rosa, rosa do Curdistão,
desperta, ao grito da guerra,
brandindo a esperança
trazendo-a no olhar
como o fogo mais aceso.
Rosa, rosa do Curdistão
sempre e sempre
és mais viva
que os olhos mortos
dos teus assassinos.
Aschenbach
Aschenbach caminhou por entre sombras
Procurando, enlouquecido,
A luz que haveria de salvá-lo.
Aschenbach percorria as escuras ruas
de Veneza, soçobrando em cada rosto
que lhe devolvia a decadência
e a morte, almejando
o sonho da beleza.
Tadzio, Tadzio
luz na luz, caminhando
na fímbria do mar
apontando para o longe
cada vez mais longe
e a vida, essa,
apagando-se no sonho.
Talvez o milagre esteja mesmo aí
sem estar, afinal
talvez esteja na asa
rastejando o fio de água
ou no modo como vês o azul nascer
ou talvez só aí
quando a luz irrompe em ti
ou na página,
esse «tanto faz»
Ou talvez o teu olhar,
querendo flutuar
talvez aí esteja a tua raiz
que não é raiz de coisa nenhuma
talvez esse seja esse o milagre
o teu, o de apenas quereres nadar
e deixares-te levar
como o vento suavíssimo de verão
esse teu gesto
o de querer deixar-se ir.
Em modo de segredo,
uma qualquer loucura desaguando
e indo, indo.
Sète
Do alto vês agora esse espelho azul
e a deitada fulguração do mar,
serpenteando entre os canais,
desenhando a perfeição
desta manhã de verão.
A luz do vento, em irisada dança,
desalinha-nos o coração
e uma voz nasce, entre as águas,
fazendo-se poema, arrebatando-nos,
enquanto os barcos
desaparecem no longe
como sonhos esvanecidos.
Escreves a fogo e a água, escreves
E cantas baixinho esse verso que te assalta:
«Qu’un long regard sur le calme des dieux !»
E sou arrastada pela tua voz
assim, chegando-me secreta do passado,
numa embriaguez de imagens,
Passado e presente, acenando-me.
Talvez por estar diante dessa imemorial
brancura do cemitério marinho,
o mar a incendiar tudo, a luz
subindo da linha do horizonte
e eu aqui, o teu olhar pousado em mim,
eu aqui, no limiar do poema,
fora e dentro de mim, regresso à voz,
no infinito recomeço do canto.
« La mer, la mer, toujours recommencée !!»
Maria João Cantinho nasceu em 1963 em Lisboa. É doutora em filosofia contemporânea e professora. Publicou 4 livros de ficção, 4 de poesia e dois de ensaio. É crítica literária e colabora regularmente com jornais e revistas literárias e acadêmicas. É membro do PEN Clube Português e da APCL (Associação Portuguesa de Críticos Literários).
Fotografia de Vitorino Coragem.
Imagens: Ad Reinhardt
Parabéns, belos poemas!
ResponderExcluirNão conhecia a poesia da autora Maria João Cantinho, mas fui, para usar um termo do último poema desta pequena antologia, "arrebatado". Poesia feita de sussurros, silêncios, sem retumbância. Mas com gravidade e agudez.
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