Cinco poemas de Fiori Esaú Ferrari










Vocês

Alguma fenda carmim
ofende a pele
plena dos olhos,
eu estou iniciado
na escuridão,
vocês que mataram Lorca
e continuarão matando Lorca,
a lâmina da pálpebra da tarde
brilha com um amor
trigal que não, não, não começou.

É do amor que falamos?
Desse veneno que corre
nos lábios ocre,
dos dias que sofremos,
o amargo da voz que se levanta
a cada manhã,
o riso que morre no travesseiro
mal remido do orgasmo
e do sono.

Orgulhem-se da sua casta,
do desejo de desejo de sua pseudocasta,
se prestem à estupidez
diante do povo,
o povo verte sangue,
lenços afagam a fragilidade
da amora,
é carmim a boca de frutos,
e frutos caem cobrindo
o fogo da terra,
aceitar as cigarras
rompendo a sua linha morena de guerra,
as cigarras são uma horda
de ódio e justiça,
vocês que mataram Lorca
e continuarão matando Lorca
por todos os séculos,
por todos os séculos.

Bateremos palmas
e cada acidente geográfico,
cada elemento da terra,
das árvores,
dos grandes troncos envelhecidos,
cada riacho e outras montanhas
distantes do Brasil
vão se vestir da grande saia rodada.

A grande saia, que acaricia o corpo
dos que não sucumbem,
dançará na finca que sustenta o teto universal,
no quintal,
na rua,
no cristal do futuro,
dançará sobre o medo e o horror,
dançará sobre a covardia
e sobre os campos
e sobre o gado
e sobre a tristeza do meu lado.     

Depois pedirá o prego na parede,
nossa mãe, minhas filhas,
vosso pai evém chegando.

Estaremos lá, na sua frente,
até o fim,
com as mãos prenhas,
até o fim,
com as mãos prenhas.

E contudo vocês vencerão
e o mundo será todo seu,
inteiramente seu,
o mundo será a sua imagem
e semelhança,
vocês, com seu deus e seu espelho,
sua decadência e sua solidão,
que a todos beija,
vocês que mataram Lorca
e continuarão matando Lorca.













A névoa acolhe este silêncio

A névoa acolhe este silêncio.

Por trás da coluna,
alguns pássaros
assumem tortuosos
movimentos,
Laocoonte,
retorcidos os filhos,
a serpente.

O pavor de continuar a manhã,
o lastro de certo posicionamento
do olhar
quando se prolonga o infinito
até a rua.

Passo a lâmina no rosto.
Gritos fascistas
vão sumindo por entre as casas
e eu canto a resistência
como um óbolo dado
nas mãos
de minha avó
que amealha com as sombras
a exatidão da lágrima.

A paz imposta antes do meio dia.

Eu ouço Debussy e um samba do Cartola.      












Em sépia 


               Pro Prof. Alcides Villaça


Saltou do trem,
tem nada
parado.

O trem é a ave do particípio.

A garoa prudente
não foi registrada
em sépia.

Que caia sobre todas as coisas.

A palavra desmedida,
a cerca crítica,
o guarda-chuva que parava o céu.

O presente esculpido
numa placa
tarda a madeira.

Fosse o tempo
um artesanato
dormente no balcão...

Algo escapou no instante do clique.

Se foi pássaro,
se foi saudade,
não saberia dizer.

Meu Campo. Editora Penalux, 2017












Cesare Pavese

Gostaria de abraçar
Cesare Pavese
como se abraçasse
o espaço do seu nascimento
e morte,
como se adormecesse
(a vida interna do meio dia)
na relva de outros continentes
e tudo fosse ternura
do contar,
a fome dos olhos e óculos,
e soubesse das coisas
pela poesia urgente
dos que se salvaram
no primeiro livro.

Variações do Exílio. Editora Penalux, 2018.












Kaspar Hauser

Sempre lembro
que quando assisti
pela primeira vez
o Enigma de Kaspar Hauser
estava triste e aves canoras,
tristes, tristes também
comiam na palma da minha mão
plantações enormes de abandonos.

Eu me achava entre os cestos
tramados de folhas secas
e via o ato supremo da delicadeza,
seu nome feito de flores
crescer no jardim.

Formava lágrima.

(Essa levo comigo na vida,
descansará até o fim
nalgum canto da minha pálpebra.)

Meu entendimento desentendia.

Se eu tivesse sido agricultor,
eu também plantava nomes.

Se eu tivesse sido agrimensor,
eu media a dor dos nomes.

Meu pai me chamou de flor.

Quando iniciei o motim
contra o velho continente,
poupei as flores de Kaspar.

Eu não podia devastar
minha alma
pra resolver meu édipo.

Variações do Exílio. Editora Penalux, 2018.













Fiori Esaú Ferrari nasceu em Itapetininga. Professor de Literatura pela Uneafro e professor efetivo de Língua Portuguesa na prefeitura de São Paulo. Seu último livro, Variações do Exílio, 2019, foi lançado pela Editora Penalux.












Imagens: Kenzo Okada


Comentários

  1. Meu amigo teceu poesia e política, são dias de luta, quando deixou de ser? Antes, o pai lhe deu nome: flor, montava o lírico.

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  2. Meu amigo teceu poesia e política, são dias de luta, sempre a luta. Antes, esse poeta com nome de flor, na sua, como posso dizer, lida transcendente?

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