Quatro poemas de Ronaldo Cagiano








ÓCIOS DO OFÍCIO

 

     Às vezes o poema é esse lugar sem nome.

                                José do Carmo Francisco

 

            O que pensam as palavras

do poeta entalado

entre versos que não vingam?

 

Sintomas do poema insurgem

contra

a difícil travessia

do deserto branco da página.

 


E a trágica embocadura

de um lápis

na fadiga dos dedos

alimentando a insônia

na vã procura

enquanto a poesia

não vem

e sou nave ancorada no vazio.

 

 

Entre um verso cansado

(escondido num baú precário)

e adjetivos em fuga

(sobras no espólio dos dias)

há uma sílaba atroz

que me inquire, com inefável tirania:

 

Dor.







 

 

 

 

 

MEMORIAL DO ANONIMATO

 

     Os retratos sabem tudo, sobretudo o que

       prefiro esquecer, o que já não sonho.

                       Magda Szabó

                           “A porta”

 

 

Os móveis da casa

em sua insuspeita alienação

estão mudos

 

As paredes:

necrotérios de sombras.

 

Os álbuns

de retratos

(canteiros de insetos mortos)

calados & escuros:

escondem esqueletos de lembranças,

são tão estrangeiros quanto eu

 

O passado,

mural de ossos insculpido nas paredes mortas,

atravessa-me com seu silêncio

& seus segredos.

 

 

 

 

 

 

WALL STREET

 

Somos todos

vítimas do mercado,

esse polvo argênteo

com seus músculos insones

a nos enredar em seus braços:

 

hipnose com o veneno de seus fetiches







 

 

 

 

 

INDÍCIOS DE AGORA

 

Era aquela tarde

em que o sol agonizava

e espalhava um vento funerário

sobre a cidade imóvel

 

Do fundo

de minhas vísceras cansadas

eu ruminava os ocultos de

minh’alma

 

No dilúvio

das enzimas

que consumiam os sinais

da minha fome

 

eu sentia a distância

todas as coisas

 

Ausências

Solidões

Ilhas desgovernadas

 

A vida

com tantas emboscadas

e interinidade,

sinuosa via

onde trafiquei ilusões,

 

agora é um canteiro assim de mágoas

espólio de desdéns

alfândega onde se paga

o duro pedágio do inacontecido

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ronaldo Cagiano, mineiro de Cataguases, formou-se em Direito em Brasília, onde viveu por 28 anos, tendo morando 10 anos em São Paulo, reside atualmente em Portugal. Estreou em 1989 com “Palavra engajada” (poemas) e dentre suas obras, destacam-se: “Dezembro indigesto” (Contos, vencedor do Prêmio Brasília de Literatura 2001), “O sol nas feridas” (Poesia, Ed. Dobra, SP, finalista do Prêmio Portugal Telecom 2013), “Eles não moram mais aqui” (Contos, Ed. Patuá, SP, 3º lugar no Prêmio Jabuti 2016) e “Cartografia do abismo” (Poesia, Ed. Laranja Original, SP, 2020).

 

 

 

 

 

 

 

Imagens: Thomaz Ianelli


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