Seis poemas de Helena Arruda









[entre as horas]

 

o amarelo do quadro de van gogh

brilhou na menina dos meus olhos

embaçados de tristeza e

eu reluzi inteira para a vida

que estava inerte

num canto da parede,

refletida na imagem da santa

que me olhava com seus olhos

de piedade e mansidão.

 

o amarelo do quadro de van gogh

me queimou inteira na fogueira

dos desejos de mudança e eu vi

no fundo do branco

dos seus olhos,

um vale azul profundo,

rio onde deságuam possibilidades de cura,

onde me lavo, me esfrego

para sair o cheiro da tinta

da melancolia

que me colore todas as tardes

com a cinza das horas

prenunciando o fim do dia,

da vida,

que se abrevia.

 

 

 

 

 

 

[dos poemas suicidas]

 

 

hoje, caminhando ao sol, pensei nos dias

que não vivi,

nas horas intermináveis das ruas

das cidades,

nos alvoroços dos carros, nas gritarias

dos vendedores ambulantes.

 

hoje, caminhando pelas ruas

da não-urbe,

pensei nos poemas que não escrevi

e nos que escrevi em demasia

e que ainda moram em mim.

 

hoje, caminhando pelas montanhas,

pensei nas pessoas que conheci e

nas que conheço desconhecendo,

nos poemas que estão ainda

dentro da caneta.

 

confesso que o que mais pensei

hoje, caminhando

pelas ruas

que gritam dentro de mim,

 

[veias latejantes que me pulsam]

 

foi no leitor dos poemas que escapuliram,

que saltaram de mim

fazendo acrobacias sem redes de proteção

: poemas suicidas

que são corajosos,

dão mortais no ar

entre um suspiro

um susto

e uma queda.

 

depois, só depois

o aplauso.

 

hoje, caminhando

pensei

 

nos poemas suicidas.

 

 

 

 

 










[multiculturalismo]

 

entre o eu e o não-eu

descubro o sentido da margem

descubro o sentido da luta

da terra

do homem

entre o eu e o outro

descubro um pouco de deus

na antimatéria

 

[montanhas andaluzas]

 

entre meu eu e seu outro

descubro um pouco de mim

: cigana de olhos oblíquos

pintados de rímel

borrados de mel

do sol do poente

crepúsculo

que cobre de cores

a dança espanhola

em torno do fogo

de um deus ancestral

descubro entre meu eu e

seu outro

minha identidade plural.

 

 

 

 

 

[nascimento]

 

hoje acordei com aquela sensação

de não ter nascido ainda.

 

mas qualquer hora eu nasço,

em algum momento eu chego

e permaneço um pouco mais.

 

e serei ouvida e serei alguma coisa

que valha e serei um sol

ou um flamboyant florido em setembro

com as mãos estendidas para o infinito.

 

hoje eu acordei com aquela sensação

de não ter nascido ainda.

 

mas qualquer hora uma estrela cadente

passa e me vê e me aponta o caminho

para o mundo longínquo

das constelações.

 

por enquanto sou só o pó e a neblina

o mato rasteiro que tenta se agarrar

às pequenas coisas que dão algum tipo

de contentamento, tanto faz.









 

 

 

 

 



[no coração do mundo]

 

no coração do mundo batem muitos sonhos

e segredos

: caixa de pandora a guardar tolices

 

no coração do mundo transbordam muitos anseios

e desejos

: fios de ariadne a tecer ideias

 

no coração do mundo latejam muitas artérias

e medos

: fúria de zeus ao criar o homem.

 

 

 

 

 

[nas bocas do mundo]

 

lá fora no meio das árvores

uma coruja pia no ouvido do mundo

dizendo que tudo é ilusão

 

: o homem o bicho o poema

 

lá fora no escuro do mundo

o pensamento flutua nas fendas transparentes

da memória

trazendo lembranças da morte

 

: o poema o homem o bicho

 

lá fora a tempestade encharca as bocas

nas vozes sedentas do mundo

gritando que tudo é distopia

 

: o bicho o poema o homem

 

lá fora no silêncio do mundo

há uma esperança

dizendo que tudo é passageiro

 

: o bicho o homem o poema.

 

 

 

 

 

 

 

 


Helena Arruda nasceu em Petrópolis, RJ. É mestre e doutora em Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFRJ. Poeta, contista, ensaísta, é autora dos livros Interditos – poemas (Batel, 2014); Mulheres na ficção brasileira – ensaios (Batel, 2016); Corpos-sentidos – poemas (Patuá, 2020). Helena também possui trabalhos publicados em diversas antologias e revistas literárias. Suas publicações mais recentes constam dos livros: Ficção e travessias – ensaios (7Letras, 2019), Ato Poético – poemas antifascistas (Oficina Raquel, 2020) e da antologia Ruínas (Patuá, 2020). A autora também foi selecionada pelo Selo Off-Flip (2020/2021) nos gêneros poesia e crônica para compor as respectivas antologias. Helena escreve quinzenalmente para coluna Flauta Vertebrada, do jornal eletrônico O Partisano, e é membro do corpo editorial da Revista Topus – espaço, literatura e outras artes, da UFTM.

 

 

 

 

 

 

Imagens: Kim Tschang-Yeul


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