Cinco poemas de Iara Maria Carvalho









Deslembranças

 

Um século depois,
foi-se o sítio.
Memórias de um
século, eu não tenho:
nem de minha vida.
O que as fotografias
antigas me dizem 
são da minha avó e eu,
mulheres de pouca
estatura, mas sorriso 
vasto, eu carregando
um matinho sem
graça na mão. 
Redes sem varandas
na sala, sonhei noite 
passada que essa
era a lembrança 
que eu deveria ter.
Os copos de alumínio 
sobre o pote,
o cata-vento, sempre 
um cachorro alegre 
preso numa árvore
que um dia já chorou.
Os primos, a vida,
as pedras
do Penedo da minha 
infância, rocha
insondável e telúrica,
impossível 
de sumir por trinta 
-dinheiros.
Venderam o sítio, 
mas as chinelas dos
meus avós ainda
se arrastam por lá.







Apanha

 

Do paiol recém-
amanhecido,

ia e vinha
a apanhadora
de algodão
com seu avental
florido.

 

A bravura 
dos capuchos
em suas mãos
de linho
era inerte e
limpa: sonhava
esperas.

 

Por um tempo
em que o campo
branco deglutia
os olhos
da moça,
ficando só
restolhos.

 

A tarde cerzida
na mesa,
lascas de luz
entre as telhas,
apanha sem fim
das coisas
imemoriais.









 

 

 

 

 

 

Passagem

 

Na última vez em que

o cometa Halley

passou pela Terra,

batizamos nosso gato

com seu nome.

 

As primas risonhas

reuniram-se em volta

da cama antiga,

onde dormia Halley

com sua cauda mourisca.

 

A colônia benta de vovó

eternizou o sagrado instante

em que Halley se salvou

de ser pagão.

 

Viveu suas sete vidas

tomando banho de sol

todas as manhãs.

 

Talvez daqui alguns anos

ele volte, deixando

um rastro de lavanda

pela casa.

 

As primas com os cabelos

já prateados lembrarão

do que é brincar.

 

 

 

 

 

 

Sob a casca

 

Em época de caju,

sou toda carne.

 

Semeio ranços

ladinos

(suaves).

 

Disfarço-me

de fruto

em cada

boca onde passo.

 

Fibra e óleo

cativos:

fajutos de tanto

escárnio.

 

Sou torra e sal

em tempo de caju:

pele irônica,

mel nativo,

céu sem chave.

 









 

 

 

 

 

Noturna

 

Apascento

cascalhos com

meus pés em voo.

 

Pedras sonoras

me orientam

aos céus.

 

Uma lagarta

de cristal

– infinita grandeza.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Iara Maria Carvalho nasceu em 1980, Currais Novos, Seridó norte-rio-grandense. É graduada em Letras e mestra em Estudos da Linguagem, pela UFRN. Atua como agente de cultura em sua cidade, através do Grupo Casarão de Poesia. Publicou os livros de poemas Milagreira (2011), Saraivada (2015) e o mais recente Meia porção de sol (2021).

 

 

 

 

 


Imagens: Agnes Martin

 


Comentários

  1. Temática de lembranças de infância recheada de saudosismo de seus parentes queridos, pois simplesmente amei esses poemas.

    ResponderExcluir

Postar um comentário