Quatro poemas (para ouvir) de Ruy Proença
APRESENTAÇÃO
VÁLVULA
meu império é um quarto 3x4. nele cabem uma cama, uma mesa, uma cadeira. a mesa tem uma gaveta onde cabem uma caixa de fósforos, um caderno, um cachimbo, uma vela. na caixa de fósforos cabe uma foto 3x4, infinitamente menor do que o quarto. na foto vive uma rainha. quando estou tristíssimo, entro no quarto, abro a gaveta, a caixa de fósforos. sempre dou um jeito de chegar até os aposentos da rainha. deitamos então, eu e ela. conversamos horas a fio, fora do mundo. às vezes ficamos em silêncio, abraçados. às vezes fazemos amor, a coisa mais sagrada. e ficamos sem fôlego. e novamente ficamos em silêncio. depois rimos a valer. espirituosos espíritos passeiam sobre nossos corpos. a rainha é meu encanto. mistério de meu império. há quem a chame válvula. de escape? a mim, pouco importa.
ENFERMARIA
guarda-chuvas são animais solitaríssimos. quando adoecem, são abandonados por seus donos. muitas vezes, os encontro no meio-fio, encolhidos, com uma costela quebrada. encontro-os gemendo baixinho, ensopados da cabeça às patas, como se já estivessem mortos. recolho-os com todo o cuidado, para que não padeçam ainda mais. levo-os no colo até o escritório e planto-os em meu jardim imaginário. trato-os com o melhor adubo e rego-os todas as manhãs, antes do sol nascer. mais cedo ou mais tarde hão de recobrar as forças, desabrochar. então, o meu jardim de guarda-chuvas, ninguém terá visto outro tão belo. e quando estiver no auge de seu viço, prepararei mudas em pequenos berços e as depositarei na porta dos antigos donos.
GÊMEOS
levito. os pés descolaram do chão. estou como o pobre padre Adelir, que se pendurou em balões de hélio – mil balões de festa coloridos – e desapareceu mar adentro. dizem as línguas afiadas que ganhou o prêmio Darwin por ter se eliminado da espécie. um sentimento me aquece, me torna mais leve do que o ar. eu, balão sem balões. a brisa sopra para o alto, para longe. navego sem instrumentos de bordo além do meu desejo e de meus sentidos. ikrek em húngaro quer dizer gêmeos. palavra crocante. miro a cidade pontiaguda sem saber onde nem como pousar. o padre olhou assim o mar. fascínio e desespero. sou aprendiz.
AGORA
agora na fruteira o mamão apodrece agora o céu escurece agora apedrejam agora a lua rachou agora na rua o cachorro sou eu agora não mais tenho mulher agora a tira da havaiana se rompeu agora perco o ônibus e a esperança agora roubaram minha graça agora as estrelas se afogam agora meus olhos são míopes agora no lixo a salamandra e minha Szymborska agora minha mãe morreu agora o mar me derruba agora a morte me tira para dançar agora a cerveja está quente agora o pneu furou agora a faca de legumes me corta agora a canção me faz chorar agora o mundo sempre injusto agora entraram em minha casa agora as milícias matam o diferente e o igual agora a mata me perde agora nos presídios os evangélicos são facção agora passo fome agora não tenho nome agora meu amigo se foi agora meu eu se parte agora o vinho avinagra agora o leite azeda e transborda agora a vida é um bordel agora não tem mais por quê agora perco o sono agora perdi coisas e peso agora perdi o medo agora quero voar agora busco calor agora busco o sol agora sou coletivo agora sou cidadão agora grito meu sonho agora sou multidão agora sou uma voz agora atravesso paisagens agora cruzo países agora sou flecha a caminho agora nunca termino
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