Um conto de Mário Baggio




QUANDO EU VOLTAR A SER NADA


Hoje pela manhã cortei fora minha orelha esquerda e a joguei no lixo. Saí para trabalhar. Na rua encontrei um conhecido, que estranhou o curativo e perguntou o que houve. Disse-lhe que tinha batido a cabeça no armário da cozinha. Pedi um café no bar e o atendente me olhou com pena e quis saber onde eu arrebentara a cabeça. Respondi que fui esquiar no fim de semana e bati de lado numa árvore. 


Quando cheguei ao escritório, todos me olharam com espanto e logo se acercaram de mim, perguntando se eu precisava de algo, o que tinha acontecido etc. Disse a eles que fui diagnosticado com um tumor maligno no lado esquerdo da cabeça e que em poucos meses iria morrer. A secretária do andar não disfarçou uma lágrima quando me deu um beijinho na bochecha. 


Todos estavam solidários com minha desgraça e me trataram com muita consideração. Achei bom ser o centro das atenções e o principal assunto das conversas. Sei que isso vai durar uns dias e depois tudo voltará ao normal — e eu voltarei a ser o mais absoluto e insignificante nada. 


Na semana que vem cortarei minha orelha direita.










Mário Baggio
é jornalista, escritor e blogueiro. Mantém o blog www.homemdepalavra.com.br, em que divulga diariamente sua produção literária. Publicou 3 livros de contos: A (extra)ordinária vida real (Autografia, 2016), A mãe e o filho da mãe e outros contos (Autografia, 2017) e Espantos para uso diário (Coralina, 2019). Teve textos publicados em várias revistas eletrônicas, entre elas Vício Velho, Diversos Afins, LiteraturaBR, Literatura&Fechadura, Gueto, Ruído Manifesto, Escrita Droide e Subversa. Participou da “Antologia Ruínas”, da Editora Patuá, e da coletânea “Fragua de Preces”, editada em espanhol. Prepara dois novos volumes para 2020, um de poesia e outro de contos.

Imagem: Chaïm Soutine [1894-1943]

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