Um conto de Luiz Eduardo de Carvalho




Os Primeiros Músicos


I


Muitas histórias há pelo mundo. As que mais me fascinam são algumas de meus parentes, próximos ou distantes, na afinidade ou no tempo. Sigo a tradição familiar de conservar e divulgar os feitos ancestrais das vinte e uma gerações de que temos notícia, apesar das últimas nada de grandioso terem realizado. Exceção feita a meu avô materno: 

Arnold Weislestiler nasceu na província de Podzolberg em 1879. Sua mãe, Pietra Anthonburgs Weislestiler, preocupou-se cedo com a educação do único filho. Ensinou-lhe a língua de seu país, iniciou-o em música, piano depois violino, e desvendou-lhe os primeiros mistérios das línguas clássicas e respectivos mitos.

Todos os dias, Pietra ninava o menino Arnold com histórias à beira da cama. Não eram fábulas de Esopo ou contos dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm. Eram as epopeias de Jasão e os Argonautas, Teseu e o Minotauro, histórias do Olimpo e seus Deuses.

Contou-me Martha Weislestiler, minha mãe, que, no leito de morte, o velho Arnold demorou-se a relembrar Pietra fabular detalhadamente como Zeus amou Leto, como desse amor nasceu Apolo em Delfos, os dias que ele passou na terra setentrional e brilhante dos hiperbóreos onde o sol sempre irradiava primavera. O retorno a Delfos e a subsequente luta contra a serpente Píton, a qual venceu com flechas forjadas por Vulcano, livrando assim os habitantes do Parnaso daquela aterradora criatura. Depois, o extermínio dos filhos de Níobe com o auxílio de sua irmã Artemisa.

Contava-me minha mãe e impressionava-me o fato de que, em tal desatino, por meses a fio, Arnold intercalava as palavras, ora em alemão, ora em português, com outras tantas em grego ou latim e com silvos, muitas vezes mesclado a blablações indistinguíveis. Cantarolava e falava e silvava e ofegava, mas não morria.

Depois de matar todos os filhos de Níobe, que se vangloriava de ser superior à sua mãe, Apolo matou os cíclopes, o que provocou a ira de Zeus e sua expulsão do Olimpo. Na Terra, entre os mortais, pastoreou gado e tocou lira, amou Calíope que concebeu seu filho Orfeu, o maior dos músicos, só igualado pela lira do pai e pela flauta de Pan.

Então Arnold cantarolou mais uma longa melodia confusa, silvou estridentemente e morreu.

Eu não havia nascido quando da morte de meu avô. Talvez pela repetida emoção depositada nas incontáveis narrativas de Martha, sinto-me presente àquele momento. Ela insistia em alegar sentido àqueles desconexos sons produzidos pelo pai. Afirmava, e havia convicção no dizer, que para os silvos e melodias existia um sentido oculto, que os entendia, embora fosse incapaz de traduzir aquele confuso discurso cifrado no código do delírio.

Tentarei alcançar os motivos que levaram Arnold a relembrar o mito de Apolo. Decerto, havia razões nessa obsessão que extrapolam as reminiscências de sua infância, mas não que isso pudesse acarretar significação para a ininteligível fração de sua funesta narrativa:

Meu avô não poderia ser considerado um nazista, porém, integrado ao contexto sociocultural em que se deu a ascensão do III Reich e mantenedor de um estreito convívio com a cultura clássica, crente na superioridade helênica, deixou-se influenciar pela propaganda ideológica arianista - não de forma definitiva, contudo o suficiente para julgar-se superior em seus olhos azuis e cabelos loiros e, sobremaneira, em seu exuberante intelecto.

Tal presunção de superioridade bastava-lhe para outra maior: identificar-se com Apolo. Julgava-se muito belo, virtuoso músico e em tudo encontrava semelhanças entre sua vida e a do deus, como se o mito fosse uma mera metáfora de sua própria existência.

As últimas palavras meu avô proferiu privando com tal identificação. Entretanto, não a esse sentido referia-se minha mãe, no entanto ao oculto nos obscuros e primitivos sons produzidos por seu pai. Enfim a compreendo, e aumenta o meu pesar por não ter presenciado os últimos momentos de Arnold.

Com o recente falecimento de Martha, a casa em que vivi a infância encontrava-se desabitada. Julguei por bem alugá-la, antes, porém, era necessário desocupá-la. E assim se deu o achado que determinou este relato. Iniciei o processo de triagem e encaixotamento dos vários objetos espalhados pelo antigo sobrado da Pampulha. Comecei pelos livros. Neles parei.

Um dos primeiros volumes que retirei do alto de um velho armário amontoado de incontáveis tralhas apresentava uma encadernação mal acabada em couro pardo. Na capa, as letras douradas A.W. e o algarismo dois em romanos. Tomei-o por uma antiga obra sem valor. Não fossem por amareladas páginas presas por um elástico apodrecido que se rompeu, o que ocasionou-lhes a queda ao chão, não teria dado atenção ao volume encontrado.

Como o dia estava apenas no início, restava-me muita paciência. Despojado de qualquer irritação, desci do alto da escada e apanhei as folhas sobre o tapete. A fim de tentar ordená-las de acordo com a numeração no alto das páginas, sentei-me na velha cadeira de balanço e, só muito depois percebi, ali passei várias horas lendo-as e também o livro que as acompanhava.

A leitura sentenciou a veracidade da afirmação de Martha, endosso-a agora. Acredito, e demonstro imparcialmente meus motivos calcados em conhecimentos sacramentados pelo conhecimento acadêmico. Era verdade, a última mensagem de Arnold Weislestiler encerrava um sentido oculto.


II


De acordo o seu título - Nicht Wissenschaftliche Vorrede für Wissenschaftliche Werke von Arnold Weislestiler - as folhas avulsas eram um Prefácio Não Científico Para A Científica Obra De Arnold Weislestiler, escrito em alemão em tinta azul e com passagens ilegíveis, borradas.

O prefácio refere-se a uma obra em três volumes intitulada Die Ersten Musikanten ou, em português, Os Primeiros Músicos. Vasculhei toda a casa em busca dos dois volumes restantes, em vão.

Contou-me meu avô, por meio do manuscrito, que não havia um passado comum a ele e aos outros homens. Para a grande maioria, o berço de nossa civilização ocidental, “a bacia de confluência de nossa sede de retorno a uma origem grandiosa e glorificada”, encontra-se na antiga Grécia. Esse fora, porém, o seu próprio berço, dado pela mãe. Era-lhe imperativo buscar uma archè um tanto mais remota: dedicou-se à arqueologia e antropologia e manteve os estudos musicais.

Iniciado em arqueologia na juventude tenra, Arnold conservou ao longo de toda a vida o hábito de observar com atenção qualquer fragmento de rocha, utensílios ou ossos que pudesse encontrar pelos longos caminhos que percorria. Em uma dessas caminhadas, próxima da isolada Gun Baumgart, única indústria da província, deparou-se com o primeiro vestígio daquilo que se lhe revelaria um sítio arqueológico de inestimável valor.

Entusiasmado com o achado, tratou de levantar fundos com o pai, Klaus Weislestiler, um próspero médico, para comprar a área onde instalaria seu campo de trabalho, iniciando um projeto que culminaria com a execução da obra que hoje encontrei fragmentada.

Como precaução contra as cada vez mais aviltantes apropriações do Reich sobre todos os tesouros nacionais, ainda mais sobre os artísticos e os arqueológicos, Arnold não revelou nada sobre o descoberto. Manteve sigilo absoluto de sua atividade, dela só compartilhou com seu pai que, durante toda aquela época, custeou-lhe as pesquisas. Para não despertar a atenção dos colegas catedráticos, desligou-se da Universidade de Gueesland. Dos curiosos e dos inoportunos vizinhos, livrou-se com tapumes de madeira a, cercarem a área das escavações. De tempos em tempos, trocava de ajudante, sempre a buscar em incultos camponeses o braço para execução do penoso trabalho com a pá, a enxada e a peneira.

O solo da região era rochoso, todavia não o da área cercada que, para compensar sua pequena extensão, apresentava grande quantidade de material aos poucos acumulado num barracão construído no fundo do terreno.

Arnold, obstinado, dedicava-se efusivamente ao trabalho. Sua fervorosa entrega aos livros e às peças arqueológicas afastava-o das profundas modificações políticas que toda a Europa sofria. O trabalho já entrava em seu quarto ano e a guerra no terceiro. O único contato incômodo do entusiasta cientista com a realidade sangrenta do III Reich era mantido pelo seu pai, crítico veemente do Nacional Socialismo.

Nas vésperas do natal de 1941, Klaus Weislestiler e sua esposa foram presos por oficiais da Gestapo sob ordens de Heydrich. Arnold, sua mulher e filha nada puderam fazer, pois estavam em viagem à Gueesland para coleta de mais dados na biblioteca daquela universidade. Ao retornar a Podzolberg, receberam duas notícias: a Gun Baumgart seria convertida em indústria bélica e o terreno onde se encontrava o campo de pesquisa fora confiscado pelo III Reich para ampliação do pátio industrial. A outra notícia foi a da prisão dos pais. Não houve tempo sequer para protestos.

Arnold também conta que, ao tentar voltar ao terreno, foi detido por um soldado - um gigante cego às coisas dos homens. Via o mundo distorcidamente por intermédio de um único olho no meio da testa: o emblema da SS em seu quepe. - Meu avô fingiu-se de vencido para atacar à traição e desferir-lhe um golpe à cabeça. - O forte soldado tombou morto ao chão, qual um ciclope. - Dessa forma, o restante da família Weislestiler viu-se obrigado a deixar o país às pressas. A perseguição estendeu-se aos herdeiros de Klaus, antinazista e proprietário da área de interesse militar.

Os Weislestiler conseguiram alcançar o rio Elba, depois o Mar do Norte; embarcaram para a Holanda. Por não conseguirem asilo no país baixo, partiram para a Inglaterra onde passaram alguns meses. Desembarcaram por fim no Brasil em julho de 1942 e fixaram residência em Santa Catarina.

Clandestino, longe do país natal, sem dominar  a língua portuguesa, Arnold trabalhou no pastoreio de gado até outubro de 1944, quando surgiu a oportunidade de mudar-se para Belo Horizonte.

Foi em solo mineiro que retomou seu trabalho de arqueologia e etnologia. Começou a ordenar suas pesquisas e a analisar os dados coletados na Alemanha. A partir desses estudos, elaborou a edição caseira de sua obra em três volumes. Foi também em solo belo-horizontino que enfim soube do paradeiro dado em morte dos pais em 1945 e viu casar-se a filha Martha em 1951. Foi, finalmente, no casarão da Pampulha que pela última vez falou, ofegou, silvou, cantarolou e morreu aos 28 de maio de 1962.


III


Em 1859, Charles Robert Darwin publicou The Origin of Species, obra que Arnold Weislestiler leu aos quinze anos. Baseado em conceitos contidos nessa obra, Arnold começou a desenvolver sua teoria.

Assim como Darwin desconhecia os trabalhos de seu contemporâneo Gregor Johann Mendel e, em decorrência, não conseguiu explicar determinados pontos da sua própria teoria evolucionista, também Arnold desconhecia algumas noções de antropologia física que só viriam a ser elaboradas a partir da década de sessenta. Na construção de sua obra, necessitou de muitos conhecimentos de outras tantas ciências diversas, e esses foram seus parâmetros, pois a própria antropologia ainda não lhe podia oferecer dados para uma maior compreensão de sua descoberta.

A perplexidade de Arnold diante da inédita teoria que cunhava não lhe freou a eloquência e clareza com que imprimiu seu texto. É óbvio que o entendimento global da obra encontra-se prejudicada pela ausência dos volumes I e III. Um grande exercício mental é exigido de quem se proponha a interpretar Die Ersten Musikanten. A compreensão global apenas se efetuará se atentados e encadeados logicamente todos os detalhes disponíveis no prefácio e no volume II.

O sítio arqueológico encontrado na Alemanha anterior à guerra e destruído por inteiro com a austeridade do bombardeio aliado sobre a Gun Baumgart revelou peças de estudo que remontam a um passado estimado em 90 mil anos. Um período em que, segundo o que consta do livro de encadernação em couro pardo, um grupo de hominídeos sofreu um isolamento geográfico caracterizador do surgimento de uma nova raça.

Durante dezenas, talvez centenas de milênios, a nova raça seguiu uma linha evolutiva própria e diferenciou-se, não ao extremo da especiação, porém privou-se de características tipicamente humanas. Uma com certeza, detectada por Arnold: o centro de Broca.

Conforme os atuais conhecimentos da antropologia, em um dado ponto da evolução humana cessaram-se as diferenciações biológicas e, a partir de então, apenas as culturais tiveram lugar. Acredita-se hoje que a última grande aquisição biológica do homem foi o centro de Broca, centro neurológico responsável pela articulação da linguagem escrita e falada, correspondente à área 44 de Brodmann - pé da terceira circunvolução frontal esquerda do cérebro humano - descoberto por Pierre Paul Broca, antropólogo francês que viveu entre 1824 e 1858.

Antes dessa última preciosa aquisição, o homem primitivo apresentava prejuízo na comunicação, então restrita aos gestos. O repertório e a velocidade de elucidação de ideias na linguagem apenas gestual são limitados. Darwin atentou ao fato: "a linguagem gestual não pode ser efetivamente empregada quando nossas mãos estão ocupadas, ou quando a visão das mãos está impedida, por exemplo à noite". Assim as linguagens verbais suplantaram as gestuais na espécie humana. Exceto entre os hominídeos descobertos por meu avô.

Os Musikanten, nome com que Arnold batizou os primitivos do sítio de Podzolberg, não puderam desenvolver a linguagem verbal por não terem adquirido aquele centro neurológico responsável pela articulação da musculatura mandibular e da laringe. Isto foi revelado pelo estudo dos crânios encontrados que apresentavam capacidade volumétrica para conter um cérebro de algo em torno de 1480 cm3 e que exibiam uma espátula óssea em seu piso frontal. É provável que o centro de Broca já houvesse surgido entre os Musikanten, entretanto, com o desenvolvimento do indivíduo, ele atrofiaria devido ao contato mecânico com o calo ósseo que, por ser mais resistente do que a massa neurológica, não cederia em detrimento do desenvolvimento daquela região cerebral.


IV


Em vinte e quatro de agosto de 1938, logo no início das escavações, Arnold Weislestiler encontra em uma vala de apenas 3 metros e 40 centímetros de profundidade um conjunto de bastões cilíndricos. Todos com a mesma espessura aproximada e de comprimentos diferentes, sempre aos pares, feitos de pedra e perfurados ao longo de sua extensão. A antiga foto em revelação sépia reproduzida neste artigo consta da página 37 do segundo volume de Die Ersten Musikanten.

Ao conjunto desses bastões, o arqueólogo designou o termo rupes. Nos meses que seguiram, foram encontrados outros que lhe intrigavam pela regularidade apresentada em sua variabilidade de comprimento, pois, quando não iguais, eram proporcionais entre si. O maior dos rupes apresentava bastões de precisos 30 – 24 – 18 - 12 e 6 centímetros e o menor, 27 - 21,6 – 16,2 – 10,8 e 5,4 centímetros. Perfaziam um total de nove conjuntos completos, com cinco pares de bastões, e quase três dezenas de incompletos.

Durante as escavações, Arnold preocupou-se apenas em encontrar peças, catalogá-las, descrevê-las, fotografar algumas e armazenar todas. Não se preocupou em aprofundar a análise dos dados coletados no sítio e nas bibliotecas. Ao fugir perseguido em 1941, apenas pôde trazer consigo a mala com as suas anotações e alguns exemplares arqueológicos; por bem os mais perfeitos e representativos. No Brasil, montou modelos interpretativos para essas peças.

Com incrível destreza mental e profundo conhecimento de música, Arnold elaborou quatro modelos de possíveis instrumentos musicais primitivos. De acordo com uma extensa citação feita na página 58 às ilustrações do volume I, pude intuir que um de tais modelos assemelha-se muito a uma lira. Em uma larga haste de madeira encaixavam-se os bastões de pedra. Através de seus orifícios passavam e eram-lhes atados delgados fios - supostamente estreitas tiras de tripa animal ou fibras vegetais resistentes e flexíveis, que se teriam perdido junto com a haste de madeira por ação decompositora do tempo.

O arqueólogo, antropólogo e músico concebeu possíveis códigos musicais concernentes ao estudo dos sons produzidos pelos quatro modelos que construiu a partir dos rupes. Ao avançar na leitura e recapitular alguns trechos do prefácio, concluí que tais códigos apresentam traduções. Na realidade, os sons produzidos eram signos análogos aos linguísticos, tais como os concebemos. Entre as páginas 53 e 64 há inúmeras referências a esses códigos, todas feitas ao volume I. Deduzi que o primeiro tomo perdido contém uma sistemática análise de possíveis linguagens musicais. Entre elas, talvez uma criada, desenvolvida e utilizada pelos Musikanten.

Naquela estranha linguagem, tlom-tlom poderia significar, por exemplo, aproximação; e plim, talvez caça. Assim, quando um daqueles primitivos produzisse a sequência sonora tlom-tlom-plim, estaria a comunicar a aproximação da caça. Obviamente esse infeliz exemplo não figura na fração da obra que encontrei sobre o velho armário, criei-o para elucidar minha compreensão. É de se esperar que os sons fossem reproduções miméticas da realidade, tal como, acredita-se, as primeiras palavras criadas pelos outros Homo habilis eram de caráter onomatopaico - apesar de nenhuma referência feita aos Musikanten como sendo Homo habilis, é quase certo que os hominídeos descobertos por Arnold estavam à frente desta espécie na linha evolutiva. Ou eram Homo habilis ou já eram Homo sapiens.

Retrocedi diversas vezes na leitura do livro e do prefácio para aplanar algumas dificuldades de entendimento devidas a leituras negligentes, desinformada ou ainda sem as perguntas que o encadeamento das descobertas gerava. Dediquei meses de estudos e pesquisas para desvendar o mistério chamado Die Ersten Musikanten.


V


Logo na primeira retomada da leitura, chamou-me a atenção a única das páginas do prefácio que não se apresentava numerada; destinava-se a agradecimentos:


"Não sei como pareço para o mundo, mas para mim, sinto-me somente como um menino a brincar na praia e a divertir-me, achando aqui e ali um seixo mais liso ou uma concha mais bonita do que o comum, enquanto o grande oceano da verdade permanece totalmente desconhecido diante de mim".

Isaac Newton – 1770


A ciência não deve assumir um caráter finalista. A realidade ultrapassa o simples fenômeno, um fato ao qual não podemos nos subtrair e cuja análise integral nos levaria necessariamente a passar do problema científico ao metafísico e religioso. Não pratico ciência com a finalidade de desvendar a totalidade das verdades e dos mistérios do universo e sim pelo prazer de deleitar-me com os fragmentos do saber, de divertir-me com as respostas que a maré do oceano da verdade traz à praia.

Como Newton, procedo qual um menino que procura respostas em seixos e conchas, diferencio os mais lisos e as mais belas, conscientizo-me da existência dessas diferenças e finalmente chego a esta reflexão:

A incapacidade humana de vislumbrar o conhecimento total, o absoluto.

Uma herança do homem; nossa e de todos os que nos seguirão. Uma herança; um constante desafio: o mistério - nossa tragédia.

Acredito contribuir para a história ao aproximar-me mais de seu princípio, porém nunca terei tal certeza. Eis o desafio. Assumir o trágico. Continuar a procura, mesmo ao saber que não há um fim para esta procura, que uma única vida é pequena, que as praias são muitas e que para cada seixo, tantas rochas; para cada rocha, tantas vidas; para cada vida, tantas descobertas.

Meninos de todas as praias, obrigado. Especialmente Charles Robert Darwin, Pierre Paul Broca e Carl Gustav Jung, mestres que, com suas descobertas, possibilitaram minha humilde investida científica.

Dedico este trabalho a quem dediquei todo o meu amor, à minha amada esposa Barbara A. Weislestiler, e à minha filha Martha A. Weislestiler humildemente.


Arnold Weislestiler – 1959


Decerto a antropologia é uma das mais abrangentes ciências que há, no entanto como incluir a psicologia junguiana na gama de seus estudos? Que tão fundamental contribuição teria Arnold obtido da obra de seu contemporâneo Jung para que ele figure ao lado de Darwin e Broca na lista de menções? Mais uma vez Ariadne punha, não nas de Teseu, no entanto nas minhas mãos, a ponta de mais um novelo de linha para guiar-me pelos caminhos de mais um labirinto de deduções.

A chave desse aparente mistério está na obra do psicólogo. Carl Gustav Jung, discípulo dissidente de Freud, nasceu em 1875. Autor das teorias dos arquétipos e do inconsciente coletivo, Jung afirma que “nossas mentes são produtos de uma longa evolução histórica, de um desenvolvimento biológico, pré-histórico e inconsciente da mente do homem primitivo... Um experiente pesquisador da mente humana pode verificar as analogias entre as imagens oníricas do homem moderno e as expressões da mente primitiva, as suas "imagens coletivas" e os seus motivos mitológicos”.

Jung designou o termo arquétipo à tendência inconsciente de formar representações dessas imagens e motivos:

O arquétipo é, na realidade, uma tendência instintiva, tão marcada como o impulso das aves para fazerem seus ninhos ou das formigas para se organizarem em colônias. Chamamos instinto os impulsos fisiológicos percebidos pelos sentidos. Mas, ao mesmo tempo, estes instintos podem também se manifestar como fantasias e revelar, muitas vezes, a sua presença através de imagens simbólicas”.

O estudo de Jung pode, numa das visões da multifacetada ciência, ser considerado uma "antropologia" da mente. Sem dúvida suas teorias influenciaram Arnold na sequência do Die Ersten Musikanten, com mais ascendência sobre o que concerne ao terceiro volume, do qual pouco posso aferir. Concluir determinados pontos do primeiro tomo não foi tarefa fácil, porém as referências feitas a ele no prefácio e no segundo volume, que eu li e reli com cuidadosa atenção, atenuaram a aspereza do trabalho. Precisei recorrer à contrária tática: projetar apontamentos do prefácio e dados de todos os textos disponíveis nas teorias do Dr. Jung para decifrar o conteúdo do último e mais inusitado volume da obra:

Aqueles Musikanten que conseguiram romper o isolamento geográfico migraram para regiões próximas, onde viviam outras comunidades de hominídeos. Por não ter se efetuado o isolamento reprodutivo, eles não foram submetidos ao processo de especiação e, portanto, desfrutam da condição de se cruzarem com parceiros das outras tribos, o que gerou descendentes férteis.

Aproximadamente quinze anos após a morte de Arnold, Holloway identificou nos moldes de crânios fósseis de Homo habilis a existência da área de Broca. Eis uma das muitas noções de antropologia física que meu avô desconhecia por ainda não terem sido elaboradas em sua época. No entanto ele admitiu, com razão, que as outras comunidades contemporâneas aos Musikanten detinham a faculdade da fala.

O cruzamento entre um indivíduo Musikanten e outro de diferente raça gerou descendentes com a carga genética determinante da extinção do calo ósseo no crânio e, portanto, com condições de desenvolver o centro de Broca.

Com o instrumental necessário à articulação da linguagem verbal, integraram-se à cultura da nova comunidade em que ingressavam, pois sempre que houver contato entre duas culturas em diferentes estágios de evolução, a menos desenvolvida tenderá a, de forma gradual, adquirir a carga cultural da mais evoluída. Foi o que se deu, ao extremo dos Musikanten perderem a principal característica que os diferenciava dos demais Homo habilis: a música enquanto forma de comunicação, utilizada como código linguístico.

Romperam o isolamento, sobreviveram ao cataclismo que extinguiu os demais de sua raça, contudo se aculturaram. Alguns indivíduos e seus férteis descendentes perduraram. Biologicamente a raça sobreviveu. Culturalmente, extinguiu-se.

Os falantes descendentes atravessaram os séculos, geração após outra, e culminaram em nossos dias. Se eles perderam o caráter distintivo que os fazia Musikanten, preservaram resíduos arcaicos, arquetípicos, que mais tarde se manifestariam em forma de arte.

O terceiro volume de Die Ersten Musikanten atribui essa ascendência aos grandes compositores da música universal.

Uma transcrição de mais um pequeno trecho do prefácio talvez seja, por si só, mais esclarecedora do que qualquer comentário que possa tecer a seu respeito:


"Quando bem se atenta a um clássico da música, ele não só adquire uma forma, mas atinge uma espécie de vida, é um ser.

A música não é mera forma, como pretendeu o filósofo em seu "Mundo como Vontade e Representação". É conteúdo. O mais remoto e primordial conteúdo daquilo cuja plenitude jamais alcançaremos: o inconsciente. O inatingível autoconhecimento (Gnóthi sautón) - a tragédia das tragédias. Nela o coro jamais emudecerá.

Sonhos e mitos são símbolos. Na arte, bem como na vida real, a música é o único índice do misterioso inconsciente, sua integralidade e segurança, nossa tragédia. Eis o profundo sentido do nascimento da tragédia no espírito da música que, pela ignorância sobre nós mesmos, presenteamos ao deus silvestre, a Dioniso, ao mito.

Resgatê-mo-la. É nossa de direito, como cada uma das fibras de nossos corações e cada uma das células de nossos cérebros. É tão profundamente humana quanto o pensar consciente. Não proponho sacrificar Dioniso em louvor a Apolo, apenas reintegrar a música ao conhecimento humano. O fogo pertence ao homem desde Prometeu. A música, desde os Musikanten.

Impressiona-me este fenômeno a que, em júbilo, dedico o volume terceiro. Durante toda a vida cultivei inexpugnável convicção de que alcançaria tal entendimento. Sei que alguns dos "grandes", como por exemplo Schopenhauer, acolhido por Nietzsche, abominariam a tese reconciliatória entre música e o mundo fenomênico numa única forma de expressão (mas Nietzsche não conheceu sequer Wagner, de cuja genialidade tanto se ocupou. Wagner não conheceu Wagner, não "autoconheceu" o seu discurso inconsciente. Sentiu-o. Eis o dionisíaco plausível).

Como demonstrarei, posso quase precisar com exatidão o significado literal das frases musicais de Wolfgang Amadeus Mozart, Ludwig Van Beethoven e, sobremaneira, Arnold Schoemberg, para citar alguns. Concentro, porém, os meus esforços sobre uma obra específica: Pierrot Lunaire, em que a peça Enthauptung narra sucessivas mutilações até o clímax da decapitação. Como segue, a melodia não atinge este clímax restrito à narrativa, em sua dissonância consciente, todavia, há uma verdadeira evocação inconsciente à mais antiga forma de comunicar-se pela música. Schoemberg, ao conceber tal peça, manifestou integralmente uma de suas mais antigas imagens primordiais: traduziu em arte o conteúdo de nosso inconsciente coletivo".

Assombrou-me o fato de que os grandes compositores e seus mais sensíveis ouvintes partilham do entendimento inconsciente de narrativas ocultas por trás de sons e notas musicais que, ainda na remota antiguidade, perderam sua função primeira. Sob a compreensão dessas subliminares mensagens em códigos ancestrais, repousa a satisfação intelectiva e orgânica que contraímos ao ouvir determinadas músicas. Daí a justificar-se os altos graus de abstração alcançados nesses momentos. Daí termos a música como inspiradora, sempre a sugerir temas e a motivar gêneses artísticas. Daí a obsessão de alguns, loucura de outros e imortalidade de todos os grandes compositores - gênios que tiveram a sensibilidade para, de modo inconsciente, preservarem uma remota e ancestral cultura que, nos primórdios da história, apresentava-se sob forma de requisito à sobrevivência e que, por isso, arraigou-se à psique humana de modo tão marcante e definitivo. Os compositores ditos menores, quase em sua totalidade populares, apenas saqueiam com avidez a música dos grandes mestres e só conseguem uma música imitada e mascarada. Os gênios, por sua vez, resgatam do limbo aquele idioma esquecido que, mesmo com sua função essencial de comunicação perdida, manifesta-se espiritualmente como conteúdo arquetípico em sua arte ou, por que não dizê-lo, em uma última e solitária mensagem no leito de morte: falando, ofegando, cantarolando e silvando, Arnold compôs a sua própria sinfonia de adeus.

Dobrei com todo o esmero as páginas amareladas e recostei a cabeça na palha da velha cadeira de balanço. Num suave vai e vem ritmado pela eternidade, com o inextricável emaranhado de informações fragmentadas sobre meu colo, qual criança que ninasse, melodiei uma antiga cantiga infantil alemã:


“Canta que o teu canto espanta os lobos,

canta que o teu canto é a voz da tua alma”




(texto premiado em concurso de 1987, que teve por jurados 

o escritor Ricardo Ramos e o poeta Mario Chamie)








Luiz Eduardo de Carvalho sempre atuou na intersecção entre Cultura, Educação e Política, tendo emprestado da Comunicação Social as ferramentas para as pontes. Estudou Farmácia e Bioquímica e Letras na USP e formou-se em Comunicação Social na ESPM, licenciado em Língua Portuguesa pela Universidade Nove de Julho. Foi professor, teatrólogo, jornalista, publicitário, assessor político. Desde 2015, dedica-se exclusivamente à Literatura. Obras: O Teatro Delirante (2014 – poesia erótica e lírica), pela Editora Giostri; Retalhos de Sampa (2015 – poesia), pela Editora Giostri; Sessenta e Seis Elos (2016 – romance), pela Fundação Palmares MinC; Xadrez (2019 – romance), pela Editora Patuá; Quadrilha (2020 – romance), pela Editora Patuá. Prêmios literários: Prêmio Oliveira Silveira da Fundação Palmares – MinC, em 2015, com o romance Sessenta e Seis Elos (premiado e publicado); Concurso de Poesia de Águas da Divisa MG no 32º FESTIVALE – MinC, em 2015, com o poema Conta-gotas (1° colocado, premiado); Concurso Nacional de Literatura – Prêmio Cidade de Belo Horizonte, em 2016, com o romance Xadrez (premiado); Prêmio de Incentivo à Publicação Literária do Ministério da Cultura / Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural / Departamento de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas – 100 Anos da Semana de Arte Moderna de 1922 – MinC 2018, com a peça teatral Evoé, 22!  (5º colocado, premiado).

Foto do autor por Silvana Barreto Imagem: Orpheus 2006 | Rozanne Hawksley

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