Três minicontos de Geraldo Lima
ASSIM, DO NADA
A duas camadas de tecido abaixo da pele negra, sentiu o motor da máquina-corpo falhar. A disritmia. O corte brusco no bombeamento de combustível através da malha de veias. A fisgada, não de peixe, mas de faca que penetra aguda e tensa. Queria duvidar: cessar assim, sob sol matinal, o pulsar forte de todos os dias? O pulsar sanguíneo, ininterrupto? Pois não estava de pé há anos, numa demonstração de vigor e saúde esse tempo todo? Árvore frondosa, milenar, que não tomba nunca – Baobá invencível pelo tempo. Até uma certa arrogância, de pretensa eternidade, nesse modo de viver. A esposa, mesmo pregando no deserto, alertava sempre, não facilita, com saúde não se brinca.
Ainda há pouco havia planejado uma série de ações para os próximos dias, tal o estado de excitação e energia que lhe tomava o ser. Bebeu uma xícara de café bem quente e acendeu um cigarro. Ah, não poderia haver prazer maior que esse. Fuma lá fora, a esposa lhe pediu. Então abriu a porta e a brisa morna da manhã bateu de leve no seu rosto. Uma carícia tão agradável que o fez lembrar-se dos primeiros anos ao lado de Alice. Afastou-se alguns metros e foi aí que sentiu como que um soco no peito.
A duas camadas abaixo da pele negra, o motor da máquina-corpo enguiçando, dando sinais de uso e corrosão, de sobrecarga de emoção e estresse. Um bater agora fraco, quase nenhum. O som abafado do motor de um Teco-Teco pifando no alto, até vir abaixo e bater estrondoso no solo. A mão invisível que puxa uma cortina enorme para diante dos olhos, isolando-os da paisagem. Não poderia esperar jamais um final assim tão abrupto, fora do script, sem tempo nem para agradecer ou dizer adeus.
BALBUCIO
Está diante dela, mas é como se estivesse diante de uma estátua de mármore. De um iceberg. De um monumento erigido à indiferença humana.
Não fosse o poder de atração que ela exerce sobre ele, com uma força descomunal, incompreensível até, viraria as costas à sua frieza e partiria sem ao menos dizer adeus.
É um vício, ele pensa, o que me ata a essa mulher. Fraqueza e desapego a mim mesmo. O que era amor, algo que fruía tranquilo, virou doença, praga, infecção, ruína dos sentimentos.
O esforço, que lhe custa muita energia, é para não cair de joelhos aos seus pés. Não se desmanchar em lágrimas também. Curvar-se mais do que já se curvou é renunciar a toda dignidade. Manter-se de pé é ainda um trunfo.
Vai, no entanto, numa última tentativa, num rasgo de puro desespero, dizer que a ama, que há uma faca rasgando o seu peito, um pus alastrando pelo corpo todo. É seu último gesto de entrega, de abandono completo das forças, do brio, da alma, e se lança para fora de si mesmo, íntegro, exposto ao extremo, mas as palavras apenas escorregam pela borda dos lábios e tombam no vazio.
FENDA
Era preciso então só começar para que tudo se desarranjasse. Um primeiro gesto, arcaico, corroído pela raiva, quase impensado: a mão que se desprende do tampo da mesa e se ergue guindada pelo braço longo e forte. E depois um estalo. Um ai agudo que se prolonga na memória durante anos e anos, como uma faca que fosse penetrando lenta e meticulosa a alma, para dentro sempre, no mais profundo do ser, aí, onde o carnegão se formou.
Foi a partir dessa fenda aberta na alma que ela começou a vazar.
[Minicontos do livro inédito Lascas & outros balbucios]
GERALDO LIMA é escritor, dramaturgo e roteirista. É autor dos livros: A noite dos vagalumes (contos, FCDF, 1998, Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária), Baque (conto, LGE Editora, 2004), Nuvem muda a todo instante (infantil, LGE Editora, 2004), UM (romance, LGE Editora, 2009), Trinta gatos e um cão envenenado (teatro, Ponteio Edições, 2011), Tesselário (minicontos, Selo 3x4, 2011), Uma mulher à beira do caminho (contos, Editora Patuá, 2017). Tem textos publicados em jornais e suplementos literários (Rascunho, Correio das Artes, Suplemento Literário de Minas Gerais, Correio Braziliense, Jornal Opção e Jornal RelevO), revistas impressas (Oroboro, Polichinelo, Traços etc) e sites, blogs, revistas eletrônicas (O’Bule, Gueto, InComunidade, Nóstres, Diversos Afins, Germina – Revista de Literatura & Arte etc.). É autor do roteiro do longa de ficção O colar de Coralina (exibido em várias salas de cinema em 2018) e da peça de teatro Trinta gatos e um cão envenenado (encenada em 2016 em Brasília). Contato: gerallimma@gmail.com.
Foto: Cícero Bezerra |
Imagem: Adam P. Adam |
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