Dois contos de Henriette Effenberger








Salada de abacate

 

 O abacate, abacado ou pêra-de-advogado é o fruto comestível do abacateiro, que é uma árvore da família da laureáceas, nativa do México ou da América do Sul (Persea americana), hoje extensamente cultivada — incluindo nas Ilhas Canárias e na ilha da Madeira — e muito popular no Brasil. O abacateiro é uma árvore elegante, de caule pouco reto, e que em estado silvestre chega a vinte metros de altura.

 

 

   Menino, tinha aparência frágil. Olhos azuis, inteligentes e doces, contrastavam com o espírito guerreiro, sempre pronto a buscar o que lhe interessava. E eram muitas as coisas que atraiam seu interesse. Todas elas, de alguma forma, ligadas à arte. Possuía amigos inseparáveis, por intermédio dos quais burlava a atenta vigilância do pai sempre severo. A mãe, ao contrário, alegre e comunicativa, fazia-se entender perfeitamente pelo menino, que tinha gostos tidos como femininos. Foi para a mãe que leu o primeiro poema, escrito assim que se alfabetizou. Também era a mãe que o consolava quando o pai o tratava de forma brusca. Foi na figura da mãe que firmou sua personalidade.

 

   O abacate é um fruto carnoso, com núcleo duríssimo. Sua forma, o tamanho, o peso e a cor são diferentes para cada variedade. Pode ser verde, verde-escuro, vermelho pardo ou violáceo. A casca pode ser fina e delicada, ou espessa e lenhosa.

 

   Assim, terminou o ginasial e mudou-se para a cidade grande, para continuar os estudos. Aceito em uma renomada escola, fez amigos importantes, deixou-se fascinar pela literatura, pela música, pelas luzes da cidade, pela alegria de viver por sua própria conta. Sentia saudade da mãe, ao mesmo tempo em que se sentia aliviado por ter se livrado da opressão paterna.

 

   O abacateiro desenvolve-se melhor em solos leves, profundos e bem drenados, ligeiramente ácidos. As melhores condições climáticas são encontradas em regiões com chuvas em torno de 1.200 mm anuais, razoavelmente distribuídas, e que não sejam sujeitas a ventos fortes e frios. A temperatura média preferida oscila em torno de 20ºC, a mínima não deve ser inferior a 6ºC.

 

    Amou muito. Cedo e de muitas formas. Bonito e inteligente, foi assediado por moças e rapazes. E seduzido por ambos.

 

   Para obter uma boa polinização, é preciso que no mesmo pomar existam variedades de abacateiros A e B. Nos abacateiros de variedades A, a primeira abertura da flor ocorre de manhã, quando o estigma (parte que recebe o pólen) está aberto, pronto para ser polinizado. Mas as anteras, que contêm os grãos de pólen, só vão abrir-se na tarde do dia seguinte, quando o estigma não tem mais condições de receber o seu pólen.


    Ainda que contasse com a liberalidade da mãe, foram o conservadorismo do pai e a pressão da sociedade da primeira metade do século XX que mais pesaram na sua decisão quanto a assumir ou não sua orientação sexual. Não fez opção alguma,  nem se cobrava por isso. Assim, namorava as moças durante o dia e os rapazes à noite. Viveu intensamente a controversa década de 70, da repressão ao amor livre.


   Nos abacateiros do grupo B, a abertura do estigma e da antera tem alternância diferente, complementando as aberturas das flores dos abacateiros do grupo A. Assim, o pólen saído das anteras das flores de um grupo de abacateiros vai para os estigmas das flores do outro grupo, e ocorre o que se chama de polinização cruzada. O pólen é levado de uma planta para outra por insetos, principalmente abelhas.

 

   Nos anos de chumbo, abstraiu-se. Não combateu a ditadura de forma escancarada, mas deu abrigo a amigos perseguidos pelo autoritarismo.

   Dedicou-se à profissão escolhida, trabalhou com amor e amou o trabalho.

 

    No abacateiro, normalmente só se faz poda de limpeza. Na fase de formação do pomar, recomenda-se o plantio intercalar de culturas anuais ou de leguminosas para adubação verde.

 

   Casou-se e procriou por convenção. Livremente viveu o amor. Amou muito. Amou de todas as formas. Às claras e clandestinamente. Amou a esposa, os filhos, os amigos, os amantes. Foi amado por todos eles. Era feliz!

 

   Do fruto comestível, também se pode extrair um óleo semelhante ao azeite de oliva. Curiosamente, o abacateiro é considerado legume na maior parte do mundo, sendo consumido como salada, sopa e sob a forma de conserva. No Brasil esse hábito não é comum, pois em nosso país esse fruto é consumido basicamente na forma de vitaminas ou doces, via de regra com açúcar.

 

    Iniciou-se então a temporada das perdas: morre a mãe, o amigo querido, a filha jovem. A cada uma delas, o brilho dos olhos azuis se retrai um pouco. Junto às cãs aparecem os primeiros sulcos no rosto, a pele perde o tônus, o corpo ágil perde o viço. A morte bate à sua porta. Espreita. É tempo de Aids.

 

    As pragas e as doenças mais frequentes são as lagartas, a podridão das raízes, a verrugose e a antracnose. As lagartas são controladas com calda de fumo ou biofertilizante. A podridão das raízes exige um controle preventivo, fazendo-se o plantio em solos leves e bem drenados. Já a verrugose e a antracnose podem ser controladas com pulverizações de oxicloreto de cobre.

 

   Decide viver. Dedica-se tempo integral ao trabalho e às artes. Pinta, desenha, escreve. Trata-se. Em poucos anos os primeiros resultados começam a aparecer: expõe seus quadros, publica os livros. A doença se encolhe, nocauteada pelo avanço da ciência. Os olhos azuis, emoldurados pelas pálpebras flácidas, voltam a brilhar.

 

   O abacateiro começa a produzir no terceiro ano após o plantio, e a produção de uma planta adulta oscila entre 200 a 800 frutos por ano.

 

    É claro que, vez por outra, ele chora. Ainda que seu tronco poderoso não se vergue aos vendavais, os ramos desfolham-se com as chuvas fortes de verão.  

    Às vezes sente-se só, talvez porque seja muito maior do que as espécies que o cercam. Seus galhos frondosos acolhem ninhos de passarinhos; suas flores atraem as abelhas e sob sua sombra crescem diversas espécies de leguminosas.

    Mas é do alto que nos olha a todos. Por isso o céu emprestou a ele a cor com que seus olhos veem o mundo. 

 

 

 

 

 

 

Horas cinzentas

 

 

 

Enternecido sorrio

Do fervor desses carinhos:

É que os conheci velhinhos

Quando o fogo era já frio.

 

Manuel Bandeira

 

 

 

A pele enrugada, quase seda, quase crepe. Manchas roxas. Hematomas de outra vida. Nem sentiam, nem arrepiavam, nem doíam.

Era crepe, tal como o embaçado espelho, que há muito perdera o cristal, denunciava sem pudor. E acusava o esquecimento.

A velhice, aos poucos, vai incorporando a morte. Amarela os papéis, mais do que a nicotina mancha os dentes e os dedos nodosos. Também transfere para os braços as nódoas do espírito. A voz é rouca. Os músculos elásticos transformam-se em barbantes, não se sustentam, muito menos aos membros.

Desalento.

 

E dessas horas ardentes

Ficou esta cinza fria

 

 

A agitação externa contrasta com o tédio interior. Os poucos sons que são decifrados pelo cérebro entorpecido ecoam: Centenário... centenário...centenário!

Mãos desconhecidas invadem seu corpo e tentam retirar dele o cheiro da morte entranhado nos poros, nas cavidades, na impermeabilidade da pele.

Um gesto mais delicado no órgão faz com que relembre de sua função: prazer! 

As mãos ossudas tentam manter as miúdas onde estavam. Em vão!  Um gesto brusco, seguido de um olhar zangado, quebram o encantamento.

Colônia. Talcos. Sabonetes. E o cheiro da morte continua ali, rondando, zombando da comemoração...

Cabelos ralos penteados para trás! Que inferno! Nunca usara o cabelo penteado para trás.  Sempre se sentira mais Elvis Presley do que Gary Cooper.  E cadê o topete que passara a usar já perto da meia idade e que as pessoas diziam não ser  apropriado? Dane-se o apropriado! Num gesto de rebeldia, despenteou os cabelos com as mãos e chegou a ouvir: – Velho esclerosado!

E, como sempre, fez de conta que não escutou.

Todos o consideravam completamente surdo e senil. Sabia que estava um pouco das duas coisas. Mas quando se está prestes a completar um centenário, quem se importa com o que os outros pensam?

Muito antes já dava pouca importância aos julgamentos alheios.

Aos oitenta e cinco, deixou o cabelo crescer e os prendeu com uma fivela. Na mesma época resolveu colocar um brinco na orelha esquerda. Passou a mão no lóbulo da orelha e o brilhante não estava mais lá.  Certamente o venderam. Sentiu apenas o pedaço de pele pendurada, nem lóbulo era mais.

Tentou rememorar quando foi que tinha perdido o domínio de seu tempo e de sua vida.

 

A chama queima. O fumo embaça.

Tão triste que é! Mas...tem de ser...

Amor?...–chama, e, depois fumaça:

O fumo vem, a chama passa... 

 

Na viuvez? No primeiro AVC? No esquecer da senha do cartão do banco? Ao não reconhecer aquele aparelhinho como telefone?

Ou quando deixou de responder as perguntas?  Talvez quando deixou de ser questionado...

Lembrou-se da falecida. Do amor que viveram, da paixão que a rotina  transformou em afeto e em amor fraterno ao longo dos anos. O que fizeram das cartas que trocaram? Possivelmente estariam lá, entrouxadas em algumas das muitas gavetas, amareladas. Após a sua morte, alguém as encontraria. Se tivesse sorte, a pessoa leria, comovida,  as cartas dos bisavós. Se não, mãos descuidadas as colocariam no lixo.

Gostava de pensar que seria lembrado como o patriarca que legara fortuna e sorte aos descendentes, e que a figura do velho centenário, encarquilhado, se manteria apenas na memória dos cuidadores, regiamente pagos.

Novamente alguém penteou seus cabelos para trás, deixando a testa larga e rugosa à mostra. Mais uma vez ele espalhou os cabelos com as mãos.

Vestiram-no com um terno claro, camisa branca e uma ridícula gravata borboleta azul. O boné foi substituído por uma boina. Que cazzo de boina é essa? Sentaram-no na cadeira de rodas e como se fosse um bolo foi conduzido à sala repleta de pessoas que cantavam o ensaiadíssimo e sempre desafinado “parabéns a você”.

Adultos em trajes de gala, jovens com roupas casuais e crianças engomadas o rodearam. Teve a exata noção do que estava acontecendo quando o fotógrafo jogou um holofote em sua cara.

Não se conteve.

Deixando atônitos os presentes, que o julgavam mudo desde o último AVC, encheu de ar os pulmões e gritou: MERDA!!!

 

 Ardeu em gritos dementes

Na sua paixão sombria...

E dessas horas ardentes

Ficou esta cinza fria

 

Esta pouca cinza fria...

 

 

 (Este conto, inspirado no poema A cinza das horas, de Manuel Bandeira, lançado em 1917, é um dos que compõem a coletânea  1917/2017: O século sem fim – Ed.Patuá,2017 – e também está no livro de contos Fissuras – Ed.Penalux, 2018 –, lançado pela autora no Mulherio das Letras do Guarujá, em novembro de 2018.)

 

 

















Henriette Effenberger é romancista, cronista, contista, memorialista e poeta, com oito livros editados. Premiada em dezenas concursos literários nacionais, em prosa e poesia, assim como em literatura infantil. É Diretora de Eventos da ASES- Associação de Escritores de Bragança Paulista, entidade da qual é sócia pioneira e presidiu por duas gestões consecutivas. Membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais de Bragança Paulista, da cadeira Literatura/Livros e Leitura.




Imagem: Deborah Dornellas 

 

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