Três poemas de Rogério Bernardes









POEMA INFECTADO

hoje eu queria falar das filhoses
iguarias feitas com ovo e farinha
fritas no óleo, que todo Natal me diziam
do amor da avó paterna por nós

hoje também seria o dia
de relembrar os sonhos da mesma avó
com a rosa branca nas mãos
toda vez que um dos seus partia
irmãos, cunhados, filho mais velho
este que também era meu pai

hoje eu queria fazer poema
da viuvez precoce da mãe
dos desencontros com o irmão
da saudade dessa e dos outros avós
das descobertas e infortúnios
da adolescência envergonhada
das graves e agudas tessituras
de um passado ainda vivo, só meu

hoje eu queria contar em versos
minhas outras histórias reais
misturadas a alguns eufemismos
metáforas e alegorias aqui e acolá

queria falar do meu íntimo legado
de tudo aquilo que me agiganta
quando ainda me sinto um nada
e daquilo outro que ainda hoje
nas grandes dores me apequena

perdão, mas hoje eu não posso!

hoje eu só consigo lamentar
por outras pequenezas
que não as minhas

minhas linhas sucumbem ao ódio
- em meio à pandemia
do vírus coadjuvante -
de uma desgraça autoritária

ele destrói até estas estrofes
que deveriam ser só minhas
mas acabam por vazar a dor alheia
que igualmente não pode mais
ser escondida ou sublimada

o ódio oficial esfaqueou a metáfora

perdi o rumo de meus versos
como terra que perde o prumo
como povo que perde o tempo
como bandeira que perde o brio
como país que perde a luta
e, de luto, chora a distância
a indiferença por seus mortos

e agora tenho dois problemas

a chance perdida da paz interna
nos recônditos da memória
e a angústia insana da distopia
que me empurra para o abismo
de poemas infectados de revolta

perdão, Dona Preciosa!
ora por nós, minha avó Maria!

troquei pelo fedor do Brasil de agora
o odor noturno de teus sonhos com a rosa
o cheiro natalino de tua lusa iguaria






DESVOO

tv desligada
livro fechado
rádio mudo
nenhuma live
nenhum curso
tudo offline
tudo confuso

silêncio irrita
barulho enlouquece
meio-termo?
esquece!
já não existe

máscara estéril
álcool no frasco
rua no limbo
casa no ócio
mente na luta
contra vírus
e ódios

palavras
não salvam
silêncios
não acolhem
sem diferença
entre ruídos
e gorjeios

o pássaro
emudeceu
com asas
sem horizonte
desvoa

o pássaro
e a gaiola
sou eu












GERMINAÇÃO

hoje brotou um girassol
dentro da sala
nas frestas do piso velho
entre as paredes que me encerram
e não havia água
e não havia terra
e não havia sonho
nem fim de quarentena

o girassol apenas surgiu
intrépido amarelo sobre o cinza
múltiplas pétalas de ousadia
por cima do enfado e do desgaste
um milagre em tempos céticos

hoje brotou uma esperança
em meus cadernos
e a tentativa de falar levezas
não para esconder dores
ou o medo das ruas
ou as máscaras usadas

são levezas lacrimadas
germinadas de tanto basta!

a minha veio na forma
de um girassol inverossímil
mas absolutamente meu
e eu acredito nele, pois o vejo!
eu o desenhei na noite passada
após os comprimidos
antes da viagem rumo à manhã

desembarcamos juntos
e agora eu acredito!

meu girassol é fé
e o sol que ele busca
é a sanidade

sobre o piso frio da sala
encaro o real desafio
de permanecer em busca do sol
e de meu equilíbrio
entre a poesia
e a dor lá fora
entre os números que me abatem
e o inefável que me salva

hoje brotou um girassol!

vou semeá-lo por aí
nem que toda a plantação
seja a minha mão
e a minha casa






























Rogério Bernardes é natural de São Gonçalo/RJ e vive em Brasília. É autor de três livros publicados: Olhar de andorinha (Scortecci, 2014), Cantigas de ninar dragões (Penalux, 2017) e Cinzas de fazer fênix (Penalux, 2019). Estes poemas estarão em seu novo livro, Não servirei de alimento aos abutres, a ser lançado em breve. 





Imagens: Clyfford Still

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