Três contos de Cinthia Kriemler
CORTEJO DE ANJO
O cortejo fúnebre segue pela rua principal,
criando uma paisagem anêmica. Carros, gente, bichos dando passagem ao morto em
estranho respeito. No trajeto da procissão de rostos padronizados, casas
pequenas mantêm portas e janelas fechadas. O fechamento é tradição. A intenção
do gesto é homenagear o defunto com uma decência de passagem. Coisa antiga, de
interior. Quem o morto foi não importa. Se foi ou não criatura de pecados.
Ladrão, traidor, assassino, viciado. Na morte, tudo cessa. Porque a morte é
paga que baste. Não, não importa mesmo quem foi o passante. Só às vezes. Quando
tudo está errado. E a cor do caixão denuncia a trapaça nojenta. Como hoje em
que a morte que segue na carreta é morte desonesta. Caixão branco. Meio metro
de corpo. Nem metro inteiro. Até para Deus é covardia.
Na falação excitada dos jovens, muita raiva.
Se Deus existisse, não matava criança. Gente ruim Deus não leva. No silêncio
dos mais velhos, alívio. Mais um que escapou de crescer. De ter as mãos
engrossadas pelo plantio, de ver o café comido pela geada, de pedir empréstimo
para pagar empréstimo, de olhar para o prato vazio, de agonizar pela fome.
Crescer é desumano. Só gente jovem não sabe. Hoje é dia feliz, isso sim. Amém.
Aleluia. É o que pensam os velhos calados.
Alguns passos e eu também sou procissão. Não
importam a minha roupa colorida e as minhas mãos sem terço. Eles me aceitam. E
me entregam murmúrios recorrentes. Desgraça... Desgraça... Desgraça...
Desgraça... As mulheres mais velhas se benzem, exorcizando a palavra, ordenando
silêncio. Falar desgraça atrai coisa ruim.
O bebê morreu dormindo. Não sofreu, diz
alguém. Não, não sofreu. Deixou o sofrimento todo para a mãe. A mulher
devastada que agora abraça o caixão. Caixão branco. De meio metro. Carregado
pela carroça fúnebre. É tudo o que lhe sobra da parição tão amada. Na sua mão,
o rosário não avança uma conta. Não há Maria, Senhora, Mãe do Céu que a
conforte.
Eu tremo. Corpo inteiro. Tão forte que me
pergunto se alguém percebe. Ou se alguém se importa. Apesar dos filhos que não
gerei, tenho alguma coisa para entregar à mulher na carroça. Uma saudade de
parir e de embalar aquilo que não tive, que não sei. Mas sinto. Um choro aguado
que me devolve à oração da infância: A vós bradamos os degredados filhos de
Eva. A vós suspiramos, gemendo e chorando, neste vale de lágrimas.
Três da tarde. O corpinho lacrado pela
madeira branca é engolido pela terra. O hiato nos murmúrios é de espanto. É de
dor exausta. Ninguém se mexe. Ninguém vai embora. Eu também ainda estou aqui.
Estrangeira. Intrusa. Triste.
12h28
Ela está lá. Sentada. Esfinge deformada. As
moscas pousando em cada ruga, em cada gota de suor, nos cabelos sujos de barro.
Olhos baixos. Fixos num ponto exato daquele esparrame de lama. O vestido
estampado de todos os dias. Grudado no corpo pela chuva fina que recomeçou, que
recomeça toda hora. Sem trégua. Não importa. Ela não sabe mais nada dessas
coisas de sol chuva fome sono. Ela não dorme. Não precisa. Ela só quer ficar
ali, perto daquele chão que também é teto. Para entender. Entender por que o
peito doeu forte e o ar faltou. Naquele dia. Prenúncio. Foi o que lhe disseram.
Às 10h20, havia mais que pontadas. Ela podia
ter calado a boca. Podia ter aguentado. Mas a náusea e a dor de cabeça não eram
bons sinais. Foi o que a tia disse ao telefone. Quando o carro velho do primo
encostou na porta de casa, ela entrou, aliviada. 10h45. Ainda. Os meninos na
escola. Dava tempo de ir ao hospital e voltar. Para servir o almoço. Para
recolher as mochilas largadas na grama. Para servir o prato de Sebastião. Para
enxergar nos olhos dele as promessas que seriam cumpridas mais à noite.
O relógio do hospital mostrando 11h47. Um
único médico. Ocupado. A pressão alta brincando de desobediência com os
primeiros socorros. E de repente o nome dela sendo chamado. 11h51: o doutor
ouvindo o que ela dizia, o que o peito dela dizia, o que o aparelho de pressão
dizia. Ambos bem longe dali. Ele, em algum lugar lá fora. Algum lugar que
esvaziava os olhos dele. Ela, em casa, lavando a louça do almoço, ralhando com
os filhos, limpando, passando, guardando roupa, sendo feliz quase de madrugada,
depois que os meninos dormiam e Sebastião entrava nela, as coxas quentes e
fortes se entrelaçando com as dela, retesadas.
Às 12h15, o diagnóstico anotado na ficha:
crise hipertensiva. Nem foi uma angina, nem foi uma isquemia. Só um pique de
pressão. Associado ao nervoso. Associado ao medo de estar tendo um enfarte.
Palavras do doutor.
O último remédio engolido às 12h27. Uns
segundos depois de ler no celular a mensagem de Sebastião: Que bom que não é
nada sério, mulher. Eu não vou até aí porque preciso dar o almoço dos meninos.
Pode deixar que eu cuido deles até você voltar. Não se preocupe. Se eu me
atrasar, compenso no turno de amanhã. Se cuida.
12h48.
Mais nada. Caminho. Casa. Paredes. Teto.
Muro. Horta. Cachorros. Filhos. Sebastião. Mais nada. Tudo engolido pela lama
quente e grossa. Sepulcro maldito.
Ela está lá. Sentada. Em cima do vômito podre
da terra. Abaixo dela a casa-caixão que se recusa a devolver as fotos de
família, a bola, as bicicletas, o fogão, a cama de casal que rangia de amor
todas as noites. Gentes, bichos, lembranças. Destroçados. Afetos transmudados
em rejeitos. Restos. Ossos misturados aos pedaços de minério que a lama
devolveu para a natureza.
Ela está lá. Sentada. Sem vida. Sem morte.
Sem ressurreição. Guardiã do nada. Barro em asfixia.
RETRATO
O roupão surrado já teve outra cor. Agora, é
apenas de um encardido inadequado. A camisola florida de malha contorna os
seios grandes e caídos que se esparramam sobre o ventre inchado. Ela está
sentada numa velha poltrona gasta voltada para a janela. Pernas abertas, meias
curtas de algodão e chinelos maiores que seus pés. Os olhos estão semicerrados.
E os cabelos despenteados parecem a juba emaranhada de um leão doente. Ou que
rolou na grama. Ou que brigou por território.
A mão sobre o telefone ao seu lado indica que
talvez uma chamada seja feita. Ou que talvez ela tenha acabado de falar com
alguém. Ela está triste. E não há talvez nessa constatação. Tem os ombros
caídos como os que não se importam, a boca apertada como os que poupam palavras,
rugas na testa como os que precisam decidir. Ou que acabaram de fazê-lo. Ao
lado do telefone, um frasco transparente com comprimidos brancos está sem a
tampa. Foi aberto. Será fechado. Perdeu a tampa. Vai saber.
O gato amarelo chamado Bichano a observa da
porta da cozinha com os pelos eriçados. Os gatos eriçam os pelos quando se
assustam ou quando se defendem. E isso é certeza. Porque o Google diz que é.
Querem parecer maiores do que são. E isso é dúvida. Pode ser o leão nos cabelos
dela que o instigue a se aumentar para enfrentar o inimigo. Fera e fera. Ou ele
está excitado. Pressentindo. Perigo, morte, tempestade, ratos. Existe a
hipótese, ainda, de que os gatos detestem ser chamados de Bichano.
Dois relâmpagos emendados iluminam a sala e
um envelope de carta sobre a mesa. Talvez não haja nada escrito no papel dentro
dele. Talvez o texto já esteja meio escrito. Talvez seja apenas uma carta que
ela recebeu de alguém. Da mãe que não usa a internet. Da imobiliária informando
que será despejada. De uma empresa dizendo que o seu currículo foi aceito.
Cinthia Kriemler é carioca e mora em
Brasília. Autora, pela Editora Patuá, de O
sêmen do rinoceronte branco, lançado em fevereiro de 2020 (Contos); Tudo que morde pede socorro (Romance,
2019); Exercício de leitura de mulheres
loucas (Poesia, 2018); Todos os
abismos convidam para um mergulho (Romance, 2017) – finalista do Prêmio São
Paulo de Literatura de 2018; Na escuridão
não existe cor-de-rosa (Contos, 2015) – semifinalista do Prêmio Oceanos
2016; Sob os escombros (Contos,
2014); e Do todo que me cerca
(Crônicas, 2012). Organizou a antologia de contos Novena para pecar em paz a convite da Editora Penalux, em 2017. Tem
textos e poemas publicados em diversas antologias e em revistas literárias.
Imagens: Arcangelo Ianelli
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