Três contos de Maria Balé
MUDANÇA DE HÁBITO
Guardou por anos o vestido
com estampa floral. Lembrança em tom pastel das alegrias vividas no tempo em
que seus contornos se ajustavam aos recortes e fendas da peça de roupa daquela
grife que não existe mais. Foi fechada quando o seu estilista se atirou do
décimo terceiro andar do edifício onde morava.
A intenção de fazer dieta
agoniza na malha de urgências e a esperança de voltar a usá-lo, exausta de
adiamentos, dá a vez para a alma resignada.
Na mão esquerda, a marca da
aliança e a sacola com roupas para doação. Na mão direita, a agenda com boletos
bancários vencidos, o folder do restaurante de massas. E o cartão do analista.
Ainda com a vestimenta
lutuosa que usa por respeito isento de pêsames, lava a parede, o chão, o
rejunte e as trincas dos ladrilhos do piso da cozinha. Pelas frestas entre um
ladrilho e outro, dias antigos retornam com a clareza das manhãs às margens do
rio. A primeira refeição do primeiro dia
de casamento. Engoliu, de uma vez, um ovo frito inteiro, tingindo o branco do
linho da toalha com os fios respingados da gema mole que explodiu seus amarelos
entre a língua e os dentes.
O epílogo do roteiro escrito
nos vinte e três anos, encerrado na tarde do dia anterior, era uma questão de
tempo e magnitude do último ato. Atirar na própria glote, após o jantar de
aniversário de matrimônio, é um arremate honroso para alguém tão obstinado no
aprimoramento da sua cultuada deselegância.
Juntou os panos de limpeza,
a água sanitária, o desinfetante, escovas, vassoura, rodo e a abotoadura de
ouro, embalada para presente. Por último, as luvas. Amarrou tudo no saco de
plástico preto e levou para o depósito de lixo comunitário, no final da rua do
condomínio.
No frescor de lavanda do
banho tomado, afrouxou o cinto do robe de chambre, aspirou a brisa úmida do
começo da noite. Com cuidado, guardou as partituras das peças de Mahler.
Regulou o banco, sentou-se ao piano e tocou Jesus Alegria do Homens.
Quando chegou a tempo de
desligar o fogo e impedir que o leite, em adiantada fervura, derramasse sobre
as odiosas engrenagens do fogão, decidiu que era seu dia de sorte. Aprendera,
ainda criança, a reconhecer a linguagem dos sinais. Sinais do Universo, o que
acadêmicos teorizam como desdobramentos quânticos.
Sem pressa e em goles
lentos, tomou sua xícara de café com leite. Em passos alongados, vestiu-se como
mais gosta, jeans surrados, camiseta branca e o velho par de tênis All Star,
que não se sabe bege de cor natural ou bege por nunca ter sido lavado. Soltou
os cabelos. E saiu porta a fora.
Maria Balé é pós-graduada em Comunicação
Corporativa pela PUC de São Paulo. Produtora de textos, tem curso de Extensão
Universitária na disciplina Diálogos entre Filosofia, Cinema e Humanidades,
PUC-São Paulo e de Roteiro de Curta Metragem pelo Espaço Unibanco de Cinema,
curadoria de Di Moretti.
Imagens: fotografias de Evie S.
Maravilhosa Maria Balé sempre me emocionando com sua criatividade.
ResponderExcluirNarrativas curtas, envolventes, que, em seu espaço definido, transbordam reflexões. Bela e cuidada linguagem literária! Certeira!
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