Sete poemas de Ademir Assunção



 

OS SETE MONÓLOGOS INTERIORES 

DE LILI MACONHA


 


ELA, COM SEU CASACO FELPUDO
(primeiro monólogo interior de Lili Maconha)


Eu tento, mas muitas vezes perco o jogo.
Ela chega e se instala.

Ela.

Com seu casaco felpudo, escuro e grosso.

Sylvia Plath: "Às vezes me sinto oca.
É como se não tivesse nada atrás dos meus olhos".

Eu sei o que isso significa.

Às vezes faz muito frio do lado de fora.

Do lado de dentro também.






MICOSE NA PELE DO TEMPO
(segundo monólogo interior de Lili Maconha)



Há tempo o faquir polia as pontas dos pregos
com areia do Monjave.


Há tempos e dimensões perdidas
apenas esperando o momento certo da conexão.

Há o tempo lá fora, chuva de granizo,
fagulhas de fogos de artifício
e brumas que se movem.

Há o tempo dos estalidos distantes das estrelas.

E há o tempo do Aqui, esse templo da linguagem
que se enrola em frases-serpentes
enquanto escrevo

e que talvez continue traçando sinuosidades
muito tempo depois.

Mas de tempos em tempos
alguém estoura os miolos, alguém explode uma aeronave
alguém fecha o livro 

e não o abre nunca mais 





MÚSICA DE TERRORES
(terceiro monólogo interior de Lili Maconha)


Ela veio novamente durante a madrugada
com seus ganchos e garras de ferro.

Ela.

Ela arrancou meus olhos
e deixou fundas ranhuras no rosto.

Ela vestiu seu casaco felpudo, escuro e grosso
e se dissipou numa bruma de rivotril.

Ela deixou uma caixinha de música
em cima do Livro dos Seres Terríveis.

Ela.

Com seu casaco felpudo, escuro e grosso.






O HOMEM SEM FACE
(quarto monólogo interior de Lili Maconha)


Ela não veio a noite passada e eu tive um sonho.
Estava deitada no quarto de cima.
Havia outra pessoa na casa.
Uma pessoa estranha, embora eu a visse todos os dias.
Pessoas são estranhas quando não se consegue ver suas almas.
Quando a olhava nos olhos, só via uma sombra negra.
Ela parecia muito alta e seus cabelos estavam sempre em chamas.

Estou sozinha agora.
Nenhuma casa, nenhuma pessoa estranha, nenhuma sombra negra.
Estou sozinha, diante do espelho,
mas não posso ver minha própria imagem.
Quando era criança, eu tinha uma imagem.
Agora, tudo o que posso ver é um terrível vazio.
Espelhos não mentem.

Ainda posso falar, mas palavras não significam mais nada.
Palavras saem da minha boca e desmancham-se no ar.
Não tenho o menor desejo de permanecer aqui
ou em qualquer lugar.
Não tenho imagem, não tenho palavras, não tenho lágrimas,
mas ainda tenho algo: medo.
E alguns fragmentos de memória.

Lembro de um homem que encontrei durante uma viagem de trem.
Era alto e forte.
Vestia chapéu negro e tinha intensos olhos azuis.
Eu viajava de Londres para Turim.
Ele sentou-se na poltrona à minha frente e disse que vinha de longe.
Vinha de um tempo em que nada existia.
Nada.
“Mas então as pessoas vieram e construíram casas.
Eu perdi minha paz.
Hoje, sou um homem sem face" — ele disse.

Eu podia ver sua face. O brilho intenso em seus olhos azuis.

Permaneci longo tempo olhando através da janela do trem.
Quando me virei de volta ele não estava mais lá.
Não voltei a vê-lo novamente.
Nunca mais.
Mas agora eu sei: aquele homem era eu.






SOMBRAS CAMBALEANDO NOS BECOS
(quinto monólogo interior de Lili Maconha)



Há homens limpos no meio da sujeira.
Há homens gentis no meio da loucura.
Eu sei que eles existem.
Posso vê-los em movimento no meio da neblina.
São como sombras cambaleando sob a luz fraca dos becos,
entre latas de lixo e gatos feridos.
Eles têm a cara cheia de uísque, cerveja, vinho e cicatrizes.
Eles são velhos, muito velhos.
Eles andam sozinhos pelas ruas mais sórdidas.
Às vezes se trancam em casa
e não conseguem sequer abrir as janelas.
Eles bebem muito. Eles fumam muito.
Eles lêem histórias em quadrinhos
e dançam em cima dos muros das suas casas
quando estão sóbrios.
Eles mijam fora da privada quando estão muito bêbados
e às vezes adormecem com a cara enfiada na poça de urina.
Eles vão até o açougue e compram ossos para seus cachorros
quando conseguem algum dinheiro.
Eles ficam felizes olhando seus cachorros mascarem o osso.
Eles falam devagar e conseguem manter o olhar fixo,
durante muito tempo, em lugar nenhum.
Eles riem quando procuram a carteira pela casa toda
e a encontram caída dentro da privada
e olham para a capa de couro toda ensopada
e perguntam: “ei, o que você está fazendo aí?
eu a procurei por todo canto”.
Agora mesmo, um deles deve estar alimentando seu gato
com as últimas sardinhas que restaram
e tentando abrir a janela para a Coruja com Asas de Areia,
que bate contra o vidro, tremendo de frio.

Não consigo sentir mais quase nada,
não sei o que fizeram com a minha coragem,
nem com meu medo.

Mas sei que esses homens existem
e continuam vivos entre os escombros.
Posso senti-los por perto.





O JOGO
(sexto monólogo interior de Lili Maconha)


Ela virá esta noite, com seu casaco felpudo.
Ela trará seus ganchos. Ela picotará minha carne.
Ela arrancará meu cérebro.

Ela virá esta noite e eu estarei à espera.

O tabuleiro de xadrez está preparado em cima da mesa.

A rainha louca, o rei deposto, o bispo trapaceiro,
o cavalo de oito patas. Todos aguardam a visita.

Oferecerei cigarros e folhas de chá.
Abrirei as janelas para que Ela contemple os escombros.
Deixarei a fumaça penetrar em cada canto da casa.

Todos sabem como o jogo termina.
Só não se sabe qual será a cartada final.






TURBULÊNCIA DE NERVOS
(sétimo monólogo interior de Lili Maconha)


Arrancaram a alma das palavras.
Esfolaram a epiderme, trituraram a carne e moeram os ossos,
até esvaziarem cada camada de sentido.

Ela virá esta noite.

Carcaças corroídas pelo ácido monetário,
sílabas e fonemas são apenas fantasmas,
sem significado algum.

Ela virá. A cadela de casaco felpudo, escuro e grosso.

Há letreiros luminosos nas fachadas dos edifícios,
mas eles não dizem nada.
Tudo está a venda. Tudo é ruína. Tudo é naufrágio
e turbulência de nervos.

Ela virá e eu a estarei esperando.

Peixes agonizam entre os entulhos.
Torneiras despejam água fétida sobre pilhas de pratos.
Os corredores das universidades estão cheios de zumbis.

0 38 está engatilhado.

Os últimos poetas se enforcaram em galhos de bétulas de ferro.





[do livro Pig Brother
Ed. Patuá, 2015]






















Ademir Assunção é poeta e jornalista. Publicou livros de poesia, ficção e jornalismo, como Pig Brother, Ninguém na Praia Brava, A Voz do Ventríloquo, Faróis no Caos, Adorável Criatura Frankenstein e LSD Nô, entre outros. Lançou os cds de poesia e música Viralatas de Córdoba e Rebelião na Zona Fantasma. Vive em São Paulo.





Imagem: Leonardo Mathias

 

 


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