Seis poemas de Marina Ruivo




De ponta-cabeça

Rudeza simples devasta a alma,
Devora-a, sem rasto de enigma.
E nós seguimos e cantamos,
Mesmo sem razão.

É Deus que nos vê, hoje é sábado,
Sem bagunça no céu, faz favor.

Ele arma um arco-íris, quer a paz,
A que vem do trabalho dos anjos,
Os mesmos que pisoteamos.

É Deus que nos vê do alto,
Silêncio no céu, faz favor.

Chegamos de todas as partes,
Queremos acabar, depois nos esticar
E não ter rede que nos sustente.
Queremos ver o céu ceder.

Mas Deus ainda nos vê,
Pede calma, faz favor.

E eu quero estar no céu com vocês,
Viva – e não ascendida como anjo.
De lá não quero ruídos, silêncio,
Nem mesmo a música dos anjos.

Venha a música da cópula, a da alma,
A que chega aos pés e os faz dançar,
A que ninguém ouve.

Deus está lá ainda, e me vê.
Pede inércia, por favor.

Súbito, o sal, a fúria e o berro,
São os anjos em marcha.
Vêm num exército, lançam flechas,
Me perfuram a carne e o sangue verte,
Meu flanco esquerdo deteriorado.

Deus nos vê e não faz nada,
Nem nada pede, por favor.

Somos mortos por anjos,
Tão formosos que emocionam,
E o que dói, apenas, é não saber
Nosso crime – nosso imenso mal.






Gusto

Fred tinha trinta e sete anos
E falava de física quântica.
Hablava en español, el espanhol
Dos seus lábios índios, fortes,
Fascínio doutras terras, mochila
Esverdeando em suas costas firmes.

Me descobria verdades do universo,
O micro, o macro e os quarks,
E eu mal olhava para o feijão
Monte insólito na bandeja de alumínio.

Te sorbía, Fred, e iria hasta La Venezuela.
Chávez ainda vivia e eu largava:
Faculdade, família, trabalho,
A cigana menina de volta.

Eu de vestido azul-claro,
Algodão sobre o corpo magro,
Assistiria até Fórmula 1, Fred,
As mãos em teus cabelos, grossos,
Caindo lisos pelas costas.

Passei de tu edad, hoje, Fre.
E nunca más supe nada de ti.
Fiquei na conhecida prisão,
O medo maior que tudo.

Ni um beso yo te di, Fred,
E o gusto de fruta podrida ficou
Só na minha alma, ah, que gosto...







Terezinha de Jesus

O primeiro veio, chapéu na mão,
Carne macia das letras impressas,
Os vorazes cabelos brancos,
A identidade sempre anunciada.

O segundo veio, chapéu nos ombros,
Vizinho antigo dos negros bigodes,
A sede de mundo que era a dela,
O medo sempre sorrindo.

O terceiro veio, chapéu nos lábios,
Peixe que ficou pelas águas,
Submerso nas grandes alturas,
A morte sempre a rondar.

O primeiro podia ser seu pai,
Mas a raiva irrompeu e o silêncio
Lançou-se a fórceps pela garganta,
Calou-se para sempre Terezinha.

Ficou a sombra do beijo engolido,
Mão nos seios, meio da rua,
Vila Mariana à noite e o ônibus,
Ela sozinha caminho de casa.

O segundo podia ser seu irmão,
Traço simples, casinha do arquiteto.
Traição desencantada das histórias,
Chorou para sempre Terezinha.

Ficou o desejo adulto represo,
Braguilha aberta, saia levantada,
Mãos na nuca e o quarto barato,
O medo dele maior que tudo.

O terceiro nunca lhe deu a mão,
Afundou-se irremediável nas fugas,
Peixe-pescador a chamuscar,
Feriu-se pra sempre Terezinha.

Ficou o desejo solto, irradiado,
Camisa vermelha rasgada,
Cabelos partidos e a conta paga,
A morte a cada vez anunciada.

Olhos fendidos ressecando-se,
Arremedos tão golpeados de ilusão,
Levantou-se sempre sozinha a Terezinha,
Vida maior que a canção.


[poemas do livro Nossa barca - Patuá, 2019]





Cinzas

Cinza é o teto da quadra que alberga  
A todos, junto ao pau molhado de chuva,  
Perdido, marrom de madeira enegrecido,  
Árvore só com muito esforço, imaginação,  
Sob o descanso guarnecido da fibra.  
  
As pedras de brita volteiam o caminho  
Dos cegos, mas ele é azul e amarelo,  
Não como o fantasma das portas de prata,  
Nem o bafo quente envolvendo o rosto nu.  
  
Os suportes dos ares-condicionados  
São azuis, mas os aparelhos são cinza,  
Como as pedras e o dia, serrilhado desde cedo.  
  
Meu corpo aos buracos, mas o que o vara  
É só o vazio das formas, o que vem  
Desde sempre, e o deixado pelo pai  
Do meu filho, o que foi embora tão antes do fim.  
  
Suas cinzas se espalham em dias assim.  







Na Brasilândia, um CAPS  
  
Palavras desenhadas, marcadas a fogo   
Na lentidão da tinta vermelha e encorpada.  
Tudo que é perverso escorre, cobrindo o branco  
Sujo das paredes do Centro de Apoio  
Psicossocial da Brasilândia, antes,  
Bem antes do silêncio fluido estancado.  
   
Antes que se perca o segredo das tintas,  
Os desejos de mundo, a forma, o amor  
E a potência, a adolescente rabisca  
Palavras sem fim nem nexo, brotadas   
Do mais fundo do seu sexo, cabeça decepada,  
Os remédios a trituram, diária,  
Dolorosamente, mas as palavras saem.  
  
Esparramam-se pelo universo sem nada  
Falar, ainda, só arremetendo-se no vazio,  
Precipitando-se como chuva que nubla  
O céu de agosto, quando todos querem sol.  
  
Aquela menina pode não se curar,  
Nunca, nem daqui a dez, vinte anos,  
Mas é ela a sua cura de palavras, desnorteadas,  
Vazando por poros, arremessos, amores,  
E eu só posso agradecer sua coragem,  
Sua insidiosa continuidade da psicose.  






Caçadas
  
Sigo teu rastro-gazela, sou eu o guepardo  
Agora, e peço: pegue-me com as presas,  
Articulações e nervos fortes até que eu  
Grite. Não, eu não deixo que fuja.  
  
Deixe-me sempre as pernas todas abertas,  
O líquido jorrando, é meu sangue,   
Minha seiva, estertor dos corpos perfeitos,  
Dos olhos, revirados na hora exata,  
Os sentidos derrotados e, ao voltar,   
O ganho de mais nitidez, mais amor.  
  
Tua avidez gruda na minha e me faz tua,  
Vê como é a sede boa do corpo?  
Seu dorso que vem e me pega solta,  
Sou tua zebra, teu bicho no frio do mundo.  
  
Monte-me com amor, insensata posse,  
Faz desse encontro uma explosão luzidia,  
Corpos gementes, almas chacoalhantes,  
Junção dos átomos até eu não saber:  
De mim, de ti, de nada da vida.  
  
Se eu soubesse que era sim, amor,  
Ai se eu soubesse que podia ser assim...


[poemas inéditos]










Marina Ruivo é autora de Nossa barca (poesia, Patuá, 2019) e de Geração armada: literatura e resistência em Angola e no Brasil (Alameda/Fapesp, 2015), livro que se originou de sua dissertação de mestrado. É doutora em Letras pela Universidade de São Paulo, professora da Universidade Federal de Rondônia e pós-doutoranda na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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