Quatro poemas de Carol Sanches
“amor”
quem sabe se as flores
pudessem se aguar
teriam na chuva
instantes de consolo
regadas de descanso
mas as flores têm sede
de quem as cuide
pela raiz lhes chega
o ranger das torneiras
pelos canos
o tremular do solo
pelas gotas
o cuidado, ao transbordar
diante da mínima pressão
dos dedos na mangueira
a água é justa:
toma a forma
do corpo
que a sorve
“das dores que me pertencem”
depois de meses sem escrever
um poema se assemelha
a uma cesárea:
uma data foi marcada
uma mulher não teve
as dores sonhadas
disseram ser louca por querer
algo tão estranho
aos fluxos do desejo
disseram à mulher para se apressar
agendar rapidamente o dia
em que seu filho nasceria
certo, vejamos,
amanhã às 10h
esta criança pode
entrar em sofrimento fetal
disseram enquanto vistas grossas
cobriam um pranto sem motivos
uma mulher sem motivos
sai do consultório
com um número nas mãos
as pernas secas, a torneira do útero
sem goteiras
nada perceptível se rompeu
a não ser os olhos,
mas quem se importa com eles:
uma mulher, sem motivos
não dará ao seu filho
aquele tipo de orgulho
que só o nascer apertado
alcança
então lhe deram
um avental azul
de tão branco
não sentiu quando o sangue escorreu
nem quantas camadas de pele
foram eliminadas
pela governança higienista
Apgar 9, 10
leve imediatamente o
bebê
para a pré-lavagem
elimine a sujeira
do instinto
coloque as meinhas de
tricô
nas mãos
o poema cesárea
não dói de verdade
segue anestesiado
sonhando com o dia
do parto
“dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço”
sempre me ensinaram
direitinho
escute, menina,
ao escolher um caminho
você deixa outros tantos
pelo caminho;
eu ouvia com atenção
sobre como uma coisa
ocupa o lugar
de outra coisa
sobre como dois corpos
não ocupam o mesmo lugar
no espaço
à frente
imaginava meus passos
levantando poeira
atrás de poeira
uma camada espessa
de esquecimento
em cima de memórias
às vezes,
por falta de coragem
rodava no mesmo eixo
feito cães fazem
encontrando o melhor lugar
mais fundo
no mesmo lugar
às vezes também olhava para trás
onde se escondiam, na penumbra
escolhas não feitas
porque outras, quem sabe mais importantes
quem sabe mais exibidas
quem sabe mais imediatistas
advogadas da própria causa
foram feitas
“a pressa”
contei a ela sobre o dia,
numa ida ao dentista
eu, grávida
apressada
quase nos atropelaram na rua de cima querida
veja como me atrapalhei
olhei para o lado errado ouvi a buzina do ônibus
avançando em meus ouvidos
mas isso não importa
o que importa mesmo é sempre olhar
para os dois lados
da rua,
entendeu?
vi seus olhos
aumentando de tamanho
numa atenção desmedida
para sua pouca idade
mãe, quer dizer
que eu nem teria nascido
e já teria morrido?
é isso, filha
você entendeu.
Carol Sanches é autora de Devo admitir que me dá um certo prazer (Urutau, 2020), Não me espere para jantar (Patuá, 2019), menção honrosa no Prêmio Maraã de Poesia 2018, e dos livros independentes Poesias Pormenores (2007) e Toda diva tem divã (2008). Faz parte das antologias poéticas Prêmio Sarau Brasil 2018 e Quem dera o sangue fosse só o da menstruação (Urutau, 2019). Seus poemas foram publicados em revistas digitais como Mallarmargens, Gueto, Ruído Manifesto, Escrita Droide, Mirada Janela, Literatura&Fechadura.
Imagens: Liubov Sergeevna Popova
Auuuuuuuuuuu!Gostei!
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