Dois contos de Adriano B. Espíndola Santos












REDENÇÃO

Olhou para trás, num lampejo profundo de saudade, enquanto a mãe, arriada ao chão, chorava. O pai, pouco caso, ares – só ares – de indiferença, virou-lhe o rosto. Então, o milagre aconteceu: uma lágrima, até então contida, caiu. Splaft! A gota, na terra batida, poeira espalhou. Ressoou a imensidão, naquele silêncio sem fim; sem teto, chuva ou comida. Pegou a todos de surpresa. Olharam-se. Abraçaram-se como nunca. Ainda assim, agarrou seus trocinhos, meia dúzia de roupas, determinado e partiu: o elo, o cordão umbilical; a vida compartida, raramente vívida…
Ninguém mais soube do seu paradeiro. Nem mesmo ele. Pôs-se a brincar, perdidamente, por aí, ao léu, com os seus sonhos mais íntimos. Redenção.







ENCARRILHADA À BRASILEIRA

Topada lascada no pico do meio-dia. 37º C. Centrão. Chamboque extirpado, na grosseria. Pululação generalizada. Nervos ouriçados, já em frangalhos. Coração latejando na ponta do pé, esmaecido de aflição antiga, e renovada todos os dias, septicêmica. Cara retorcida. Dor, muita dor moída. Permeia os cernes e os confins do sistema. Até saltar, voluntariosa, forçando espaço, a libertação: “Puta que pariu! Ladroagem do caralho! Não fosse obrigado a pagar com má vontade, sem poder, essa pilha de impostos, pra governo safado, não tinha me estropiado todo. Um velho que nem eu era pra tá em casa, ou onde quisesse, esperando a morte chegar!”.
Completamente estático, como nunca havia visto, o povo me olhou. Eu, tímido, não sabia, há anos, o que era um grito; pedi desculpas: o desaforo teria ocorrido pela dor represada. Continuaram sem entender. Fiz-me de doido, à moda presidente. Uma senhora ao lado me cutucou, ainda catapultada de si, e soltou: “Mas o senhor disse o que mesmo?”. Tive pena daquela pequena senhora, franzina, que provavelmente não girava bem da cabeça. Coçava o couro cabeludo e, junto com as caspas e piolhos, caía, certamente, um pouco mais do seu juízo. Não tive tempo de me explicar. Aliás, tempo nem saúde para tal. Precisava, enfim, me livrar do fardo do dia, que é viver. Pensei em pular da torre da igreja. No ato vislumbrei o trabalho que teria em tentar morrer e, por um acaso, não morrer, ficar paraplégico, tetraplégico, inválido, vegetativo – mais do que estou –; aí, a desgraça seria maior.
Arrumei uns papéis que insistiam em sair voando da minha sacola de plástico, a porca pasta improvisada, admito, quando esbarrei, por descuido, no sapateiro desdentado. O abestalhado deu um grito gutural, que não só me assustou, como me deixou temporariamente tonto e surdo. Não ouvi mais nada que falou. Bateu forte com o seu material de trabalho num banco da praça; devia estar proferindo os mais ardentes insultos. Baixei a cabeça, em sinal de reverência e escusa – ainda que não o quisesse –, tal qual um japonês; era o que conseguia fazer há exatos setenta e quatro anos.
No caminho de volta para casa, pensei em como seriam meus derradeiros dias. Não teria mais tempo para reverter coisa alguma. Perdi minha esposa para o câncer. Perdi minha filha e netos para o meu próprio desleixo; babaquice de um sujeito ranzinza. Moro com o Genival, um gato fodido de feio, sem uma orelha e o rabo mutilado, cotó, de um acidente que sofreu – ninguém sabe, não preciso dizer, mas este porcalhão aqui recuperou-o do seu destino fatal. Não fosse ele, por pouco, teria dado um jeito de furar a preguiça e pulado da torre. Uma vez na vida, seria notícia. Uma vez na vida, seria visto, reconhecido como o legítimo sofredor brasileiro.


























Adriano B. Espíndola Santos. Natural de Fortaleza, Ceará. Autor dos livros Flor no caos, 2018 (Desconcertos Editora), e Contículos de dores refratárias, 2020 (Editora Penalux). Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados nas Revistas Acrobata, Berro, Brasil Drummond, InComunidade, Lavoura, LiteraturaBr, Literatura & Fechadura, Mallarmargens, Mbenga, Mirada, Pixé, Ruído Manifesto, São Paulo Review e Vício Velho. Advogado humanista. Mestre em Direito. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.




Imagem: Ad Reinhardt    






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