Cinco poemas de Patrícia Porto








As cinzas do martelo

Como escrever a poesia
se a palavra nos golpeia na cara?
Era um poema rude, sim, o que fiz
quando ela foi embora

Era um poema de mãos pequenas estilhaçadas,
os olhos, uns fragmentos de corpo,

Era um poema para ficar à deriva, beber da água
da menina morta, torturada

Era para ser o primeiro poema, mas não existiu
Ficou na língua, alimentando de amor às feras,
fazendo esse cansaço na memória, engodando o destino,

Era um poema e ficou sem voz,
atravessado de mar morto, um espinho na água morna

Os olhos não voltam,
os olhos seguem para a frente, criança

Inclinados sobre réquiens,
olhando o capim crescer,
vê um martelo, um quadro,
paredes brancas

Era um poema ou quase foi,
uma noite acordou ao meio:
nas cinzas do martelo

Duvido mesmo que tenha existido






Exílio

Olhe aqui onde me sangra o peito:
minha casa perdida,
meus mortos enfileirados,
os pés juntos, pés e mãos
das mulheres que se arrebentam na espuma.

Olhe aqui onde minha terra se aparta:
há um solo e esta rachadura sísmica -
uma câmera construindo imagens,
cavalos velhos carregando cargas.

Olhe aqui onde me falta a palavra -
me falta também o ar, o pão e a lanterna.

Aqui é a escrita. Uma revoada de signos.
Sem lugar.
Lugar nenhum.
Ponto só
cego nó
de partida.












Flor aberta à capela

(À Ângela Brito)

no peito aberto (le mort)
o pulo, uma sacada
uma mulher que se chama Ângela

se a viagem traz a margem
de meus olhos, terra em exílio
a chaga da outra, o risco de existir num feito de luz,
de nossas cabeças um estampado de flores miúdas,
corpo, dorso, búfalo e borboleta,
tu, terra que me partes

a câmara de gás no banheiro
levou duas crianças, irmãs
de rostos de louça
me contou Ângela

a câmara de gás e seus milhões
de meninas nas colônias

eu temo

E é com paixão






Atropelamentos

há um pouco de cansaço em mim
há uma estrada, sinistra ou sinuosa,
à esquerda do mundo, do peito
do meu país sangrento

meu coração à esquerda, estraçalhado,
esmigalhado no asfalto,
à esquerda sangrando
sem aceno sem saída

meu país foi comprar cigarros
e não voltou mais












Sem licença

Ser leve. Peso pluma.
Ser do pássaro o imponderável.
Não criar raízes. Criar asas.
Escrever na pedra o sangue fresco.
Beber do sangue e ritualizar a promessa de ser uma.
Guardar o corpo para a próxima estação.
Talvez.





















PATRÍCIA PORTO é maranhense, professora universitária, formada em Letras e Mestre e Doutora em Políticas Públicas e Educação, organizou o livro Poemas de Portinari (Funarte), publicou a obra acadêmica Narrativas memorialísticas: por uma arte docente na escolarização da literatura (2010) e os livros de poesia Sobre pétalas e preces (2013), Diário de viagem para espantalhos e andarilhos (2014)  e Cabeça de Antígona (2017). Também é autora do volume de contos A Memória é um Peixe Fora D’Água (2018). Seus textos estão presentes em coletâneas poéticas e sua atuação como escritora ainda inclui a participação em vários eventos literários no Brasil e no exterior.

Fotografia: Flavio Roitman



Imagens: Clyfford Still 


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