Cinco poemas de Marcelo Labes









é como chorar o choro dos vencedores
nos pódios em que nunca estive
nos degraus que desisti de subir-descer
pois quanto mais esforço quanto mais
fundo quanto mais alta a queda maior o
tombo - olhos olhos olhos bocas bocas
bocas - de repente, um sonho tirado
sabe-se lá de onde - de repente uma luz
vinda não se sabe de onde para apontar
o caminho

[é por ali]

e enviar áudios que deveriam ser conversas
para os amores dizendo que está tudo bem
- mesmo a voz embargada como está mesmo
o nariz fungando como está - porque está
tudo bem tão bem como jamais esteve tão bem
como talvez nunca mais esteja (talvez amanhã,
talvez daqui a uma hora tudo desmorone como
a lei diz que tem que ser para as coisas que se
erguem)

[é por ali]

uma placa advertindo isso há dez anos - onde
estaria, estaríamos se houvesse placas dizendo
o caminho anunciando tombos advertindo os
meninos que fomos onde estaríamos se - quem
sabe deus - estendesse sua mão e dissesse vem
comigo, por aqui é seguro - mas estamos aqui
exatamente aqui e envio áudios dizendo que está
tudo bem minha amiga está tudo bem meu amigo
não te preocupes comigo porque hoje sei que o
caminho

é por ali

[pelo menos por enquanto]


***






bebo teus sucos
lambo teus lados
(és tu ou são as
plantas que escorrem
depois de regadas?)

naufrago imperdoado
sobretudo porque ventas

muito antes que venhas
te adivinho os passos
porque em direção ao quarto

com a agilidade das mãos
procuro respostas para
o que é mar o que é sertão
o que é amar e o que não.

***












para Caio Augusto Leite

deitem-se os prédios
torçam-se os viadutos
diante do verde dos teus olhos
de mar
- amemo-nos, anêmona

(são tentáculos são abraços
e o calor no peito dos homens
que se acaloram)

a água não levará tua casa nunca mais
porque reforças as represas com palavras

são diques
são cisternas
são barragens

apenas o concreto ainda há de agredir
teus olhos enquanto o verde da mata
em volta não tomar também o centro

(onde vais trabalhar todos os dias)
(onde vais amar quem sabe um dia)
(onde nos encontramos apesar da paisagem)

saberemos que os passos dados
trilharam caminhos de armistício
quando for levantada a última bandeira
da última guerra acontecida

por isso caminho - bússola,
anêmona, norte, dilema que
se escreve com a sorte de
poder ser lido verde ainda
por teus olhos de mar

(tua esperança nos homens
está escrita. tua esperança
nos homens está escrita num
poema)

amemo-nos, anêmona
e o mundo que se exploda
mais pra lá.

***






para Rafael Tahan

quando enterrei o pássaro
não marquei o lugar portanto
o considero perdido

[acaso não estaremos todos?
aprendi a sonhar com a voz de
neil tannant e o synth pop dos pet
shop boys - acrescida de voyage,
voyage (aquela canção de quem
ninguém mais lembra)]

eu também me esqueço
do que sonho

; apesar da ritalina da gasolina
da amitriptilina da menina e de
caetano estaremos todos mortos
& vivos & mortos & vivos com os
joelhos embaraçados

: acaso as escadas não te fazem
doer as costas?
: acaso tua mandíbula não te perturba
também os ombros?

plantaremos uma árvore na floresta
do teatro oficina que ainda está por
nascer - e ali voaremos pássaros em
busca dum poema sublime e insensato
como são todos os poemas como são
os livros dispostos na estante e fora dela

(me lavo na louça da pia atrás duma limpeza
impossível me lambo na louça da pia atrás
dum prazer impossível me fodo na louça da pia

me corto
me curo
me salvo)

: acaso viver & morrer não será tarefa
para poucos?

[a feira deixa vestígios, a mão deixa vestígios
- e a chuva cai permanente apesar do sol apesar
do sol apesar de nós, que chovemos]

quando enterrei o pássaro
mirei errado e sinto-o dizendo
aqui-ou-não aqui-ou-não
dentro do peito.

***













[é preciso despedir-se do morto
tocar-lhe as mãos frias encarar
seu cenho sem expressão orar
palavras de coragem é preciso
deixar o morto ir]

então perdoa se não
cheguei muito perto
se tudo que fiz foi
esconder-me atrás
de nosso amigo mais
corajoso.

[é preciso suportar o abraço
da mãe do morto seus gritos
que te dizem Aí vai teu amigo]

e se possível a correção, diria
o primeiro amigo - ou não,
mas com o tempo tomamos
a liberdade de tornar tudo
mais dolorido.

[é preciso chorar o morto,
despedir-se. é preciso relembrar
o morto, revirar álbuns em busca
de uma fotografia que diga ela
própria o quanto fomos felizes]

dois meninos. eu, tão franzino,
invejava teus ossos pesados
teus dribles de quintal teu ar
amorenado e tua teimosia
(que não foi tão forte a ponto
de te manter na vida)

[é preciso visitar o morto]

tua fotografia de beca e capelo
numa lápide simples. devia ser
uma bola um lenço escoteiro
um brinquedo um comandos
em ação um foguete espacial
um video-game as pérolas que
descobríamos no jardim de tua
mãe o instrumento que copiamos
do fantástico para caçar fantasmas
(no sótão da casa velha de teu bisavô,
que já demoliram) uma bicicleta duas
um taco de bete mas lá tem apenas
uma foto tua de beca e capelo.

[e deixá-lo descansando]

pela eternidade ou aquelas nossas
horas. outro dia, parei em frente
a tua mãe e disse sou eu, o marcelo
labes e ela sorriu, envergonhada
porque já não enxerga - todos esses
anos foi questão de vista - outro
dia de novo e de novo basta apenas
anunciar sou o marcelo labes
para tua mãe sorrir como nos sorria
quando éramos meninos.

[é preciso esquecer do morto]

e não retomar seu nome a cada
passo em falso na vida a cada
tropeço a cada falha minha diante
dos outros - eles esperam tanto
de mim, eles esperam que eu seja
seja seja escreva escreva escreva
- mas ninguém sabe que aos
meninos basta um pouco de
silêncio um pouco de afeto
um abraço longo de reencontro
aqui ou aí, quem sabe
aí, é claro, que mortos não voltam
à vida a não ser em poemas
escritos às pressas com a leveza
demorada de uma despedida.

[é preciso também viver
é preciso também morrer]

como dizem que tem que ser
como dizem que tem que ser.

























Marcelo Labes é catarinense, autor de, entre outros, Enclave (Patuá, 2018), finalista do Prêmio Jabuti 2019 – Poesia, e de Paraízo-Paraguay (Caiaponte, 2019), 2o colocado no Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional – Romance. É editor na Caiaponte Edições.


Fotografia: Isadora Manerich







Imagens: Richard Diebenkorn

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