Três contos de Tere Tavares

Olhai os lírios do campo | arte digital (2018)


Do que a altura toma para si mesma
Ele espera dormir tranquilamente. Velado pelos amigos fulgurantes que o protegem. Não sabe dizer das coisas que se ocultam nas hipóteses que a solidão abraça.  A lua trafega pelo coração das galáxias. O azul é pouco porque atordoado de nuvens. Os pulmões de Elder quase se fecham como nós de cordas extintas. O trajeto foi difícil. A efervescência perpassa-lhe o ser – há nele uma criança assustada e sequiosa por sentimentos nunca recebidos e jamais experimentados – porque os carinhos que dele se furtaram hoje lhe fazem falta como nunca antes. Ele teme a desdita de não ser encontrado e dar-se conta, com moroso assombro, que poderá cair como um filete de fumo raquítico, sem nenhuma haste que o sustente. A tez incontornável, as linhas subtraídas da índole abraçam-no precisamente nesse instante que não cabe à consciência do seu inquietante atordoamento, revolvendo-o num pertencimento que lhe enternece os contornos e a fala: “Sempre me compreendi confusamente. Obrigado pelas mãos dadas e as dadas mãos. Não há como ensinar a voltar, não há volta possível. A rota é movediça – só existe a ida e custa uma vida percorrê-la.”.
Ah! A tristeza sem eco. Há que vivê-la no seu inteiro para senti-la minimamente, e, quando se faz sentir, sabe maximizar-se, fatigando-se na divagação da chama. Nem tudo é sombra na filigrana das árvores, cuja calmaria se retrata na árdua página que lhe é devoção. Elder sabe que está só, mas não de todo.  Alguém, numa aflição sem épocas, trouxe para ele de dentro da distância: “Um pastor que agora dorme e amanhã me sorrirá e me chamará para caminhar consigo”.


Teresa | arte digital (2019)


Eva
Essa feminina forma de ser ou não, de festa ou folia, de saliva e selva e suor sabe do vendaval que a desvendará em relevos. Ela, a que todos imaginam. Querem. Desejam. Ela, incorpórea sendo erva infamemente vestida, vertida em ápices com o que há de necessário para banhar o mundo.  “Eu venho aprender contigo. Quem passa em frente e tem fome, eu ajudo a matar”.
Extremos cronológicos. Que não é sincera a força das teias nem os lutos são moradia das afeições.
Encoberta em meio aos pares debatesse em júbilos como se quisesse ser, por eles, criada. Olha o horizonte e não enxerga nenhuma maravilha, embora a sua natureza deslumbrante. Sorri como quem desfalece desconhecida, tenta de todas as formas, demonstrar indiferença, mimetizar-se nos sonhos. E aquelas calosidades. Vermelhas. De frutos. E a noite branca como lava sem regresso ou fulguração. A espera suspirada. O lodo amornado que lhe dificulta a corrida, a um passo, a um quarto de seus quadris. A migração das borboletas, a canção de Chopin que lhe decanta os pés desentendidos. Ela a ser guia e conchas ao ouvido de tantos mundos desolados. “O que seria do meu sorriso não fosses tu? E os teus seios assim tão pronunciados, e os teus contornos sufocantes, e os teus ramos elásticos, Eva, és feminina embora Deus não te imaginasse, quando os Escritos Ditos Sagrados dissessem que serias a sagração, não a quiseste, mas aceitaste que devias completar a obra, sem ruborizar os pômulos do teu rosto, deitaste as tuas madeixas sobre o chão sem pensar em deidades inconsequentes. Eva [estrela do amor criativo e do prazer imortal] apenas nascias e amavas o que se nomeou como Noite dos Gêneros Humanos. A dita justiça te chamou costela e pecado. E, de pecado e costela e serpente, te tornaste ainda mais bela. Dos teus lábios, um selo, um desvelamento. Desdita! Nunca ouviste do alto que serias dominada pelo teu escolhido, nem que deverias a ele, eterna e cega obediência. Deus, quanto há entre gestar e parir  e quanto são dolorosos os partos. Do tua substância, duas descendências. Uma para cada um dos teus filhos que, expulsos do teu ventre, cobriram a Terra com seus tronos póveros. A humanidade aprendeu a mentir desde o primário ao derradeiro nascer”. 
Eva se aproxima como se inexistisse. “O fervor com que me falas é uma pista em direção à obra que antecede o teu mandamento. Não estou no centro das atrações. Transformei-me no decorrer das espirais para que, mesmo em dúvida, te aproximasses. Desfortunadamente, tiveste medo da minha alma ou matéria ou do que de mim desconheces. A tua inconstância é o que não permutas. Desapercebes-te. Sou eu o que evitas, porque me vês como um não pertencimento, seja em talento ou força. Revelas o receio indisfarçável de não alcançar-me com teu favor clandestino. Interrompes a orientação das correntes. Como se intencionasses perfurar as rotas da calmaria, te escusas e te antecipas à verdade que irriga todas as coisas. Avanças como avencas diluídas. Não te emudeças pensando que assim me roubas algo. Escuta o fascínio da reinvenção, do que ainda não atinge a absorção do que julgas incorreto. Não. Não és o mundo, nem o mundo és tu. Cada partícula suspensa no espaço é como um mosaico aniquilado, solto nos deslocamentos das interpretações, dos ocos que se apossam dos poros dos sentidos, paulatinamente ignorados, adiados para um não saber. É a Arte que sabe a tudo e o sabe antes. A estatura, a ruptura, a que és e a que sou, ainda que num paradoxo, prospera sem fronteiras, dotes, dons ou regozijos. Porque temer o perigo não significa não enfrentá-lo. Acaricia, pois, a incógnita, a cosmovisão que antecipa o ato. Destroça as indecisões e percebe tudo com novo intento. Ou nenhum. Caso fracasses. Lembra-te de que todo o movimento traz, por dentro, uma revolução maior ou menor. E, tornares-te ou não consciente, depende somente do teu esforço”.
Passados os milênios, uma loja oferece-lhe um tênis. Eva, ou uma de suas descendentes, prefere correr de pés descalços. Numa vitrine ofertam botas de cano longo com cinquenta por cento off. Parece que só há pés no mundo e não cabeças. O mercado. O outelet. O marqueteiro. O marchandise. O telemarketing. No errado tempo e na hora errada. No errado tempo e errada hora. A inconsequente hiperexposição. A invasão. A guerra da fatiada Terra. O alarde. O alarido. A corrupção. O Smartphone. O Whatsapp. O perfil nas redes sociais. A mídia mediada por infernos e céus enormes.

Sente que algo a impulsiona a prosseguir porque pior é não chegar e os males que veem para o bem lhe parecem andar a esmo. Tem saudade de uma juventude em que tudo lhe parecia simples, ausente de metáforas – dizem-lhe os ouvidos ultrassensíveis: És forte, então suporte – Eva percebe os lugares perdidos que não a verão e nem ela a eles antes do pensamento buscá-los. Certo é que, por muito tempo, foi tolo o orvalho que se fez sobre as porções irremovíveis. Impedem-na de chorar, mas ela desconhece outro modo de confirmar os olhos que, mesmo maculados, seguem a ver as bocas em forma de coração e, como Van Gogh, nunca se cansa do céu azul, como Santo Agostinho pensa que o tempo é uma extensão da alma. Há indefinições navegando. Alguém diria que são veleiros ou arcos inteiros de mar e céu abraçando os desígnios. Adaptar-se ou adaptar-se. Não há outra saída. Tudo fala simultânea e insistentemente enquanto ela não.
Aos meus sentidos serás sempre nobilíssima ainda que seja frio o líquido segregado pelos poros e a claridade débil como as pegadas ou a imprudência de um diálogo precário – que nada é eterno, seja bondade ou cinismo ou repulsa ou apenas o sofrimento frio de uma memória bondosa e, ao mesmo tempo, cruel”.
Eva evita aos apelos novamente. “Quando te avalio desapareces. Diz-me o motivo. Conta-me quando não me negarás as angulosidades da tua figura, da tua movimentação que não ostento, porque despendida e desperdiçada feito uma perdiz sem solo. A sinuosa humildade que me curva –  mundo e fardo desigual que eu não quis apanhar na ida macerada – que, aleatoriamente, cumpre esses pesadelos como se soubesse não tê-los. Vejo-me em ti como um tormento que escreve a manhã, que é de molhes mostrados, sem oceanos como fundo. Recolhes-te vagarosamente. Desminto-me. Queres a cimeira já desmoronada, desconhecendo a causa. A consumição, seja do que for, põe-me angustiada e associa-se ao passado – esse que me sufoca e me escapa. Não és a voz nem o vapor que transborda dos rios. Segues as pegadas fatigadas dos que já não possuem entendimento. Percorres o percurso às cegas, pois que não são consentimentos o que dás, senão depredações de outros pés que, antes de ti, avançaram. Se te quedares, não te admires. É a tua mesmice que te evade. É comum ocorrer quando se corre sem alguma provisão, mínima que seja. A têmpora do mapa é de uma Terra estranha de ti. És de uma fecundação outra, de um mundo que não descobres. És as cascas inférteis cuja frutificação não te fatia. Porque morres de uma sede que não tens. Então é tarde para que a algo te encaminhe. Não és herança de Adão, assim como eu também não sou. Evado-me ainda eivada de Eva. Sem razão e sem culpa alguma. Com minha própria costela e constelação.”


A vida é colorida | Aquarela (2018)


Prece
É dia de frases e a fronte é distante e morna como a festa, e se em certo instante, eu retornar pelo caminho inverso e parar e disser uma palavra imotivada, se, no meu tom de voz, houver uma fresta anterior a essa ideia de quase sono que elabora um ciclo que teria sido uma viagem redimida num universo menos abundante, numa incerta altura o meio-tom melancólico de um não ir. A decisão de não falar até que outra arquitetura surja e se decante num dia mais inteiro. Que outro um ano finda e a fadiga não fenece no que há de vir quando se sabe do que é capaz a tragédia.
Uma ressalva para os vivos cujo exemplo é reflexo. Que o ser maior nos renda a fertilização, a sacralizada bebida desenterrada do pó e faça das jornadas a intocável substância de osmose das terras com as plantações profícuas. Que nasça outro abecedário distanciado do que é triste para propagar-se em cada arranhão dos pontos estelares. Uma placidez para reaver as horas sem ferimentos, as lágrimas furtadas da complacência, dos pássaros luminosos. Tudo se redime em afeição e bom pressentimento. Penso no que tive e julguei meu e agora que o último inseto se recolhe deixo de existir enquanto minha obra me vela.  Talvez eu tenha escolhido a rua errada, a resposta, a confusão, a elaboração duvidosa e surreal – e se tudo não tivesse acontecido com tamanha adversidade para preservar a vida, prostrando-me impassível na escadaria das banalidades. Queria ser como Jesus e pôr em risco a própria sorte, sem desejar servir ou necessitar de servidão. Que seja esmagado o fanatismo, o niilismo, a negatividade e os pretensos representantes da divindade. Borda-me, Deus, com a generosidade angustiante de um dossel inviolável. Que nada me seja treva ou círculo moribundo nem rasgo a dobrar-me as vértebras e que a linha me seja intacta e o bem orbite vivo como um coração afogueado em odes de afeto. Que se deslinde a suficiência do meu corpo vivo e a rebeldia dos predestinados. Que há abrangência de revoadas longínquas ao meu estado de ave nômade. Que a contínua vigília me seja o hálito das manhãs, a respiração aromática da sabedoria, da eficaz marginalidade em que a harmonia, o pensar intensivo e a criatividade brotam isentos de todos os horrores. 

[Contos do livro Campos Errantes, Editora Penalux - SP, 2018]













Tere Tavares, escritora e pintora, radicada em Cascavel, PR, autora dos livros Flor Essência (2004), Meus Outros (2007), Entre as Águas (2011), A linguagem dos Pássaros (Ed Patuá 2014), Vozes & Recortes (Ed Penalux 2015), A licitude dos olhos (Ed Penalux 2016), Na ternura das horas (Ed Assoeste 2017) Campos errantes (Ed. Penalux 2018). Conta com publicações em antologias, jornais e sites literários nacionais e internacionais. Integra a Academia Cascavelense de Letras. 
http://m-eusoutros.blogspot.com.br ; https://www.facebook.com/tere.tavares.1


Imagens: Tere Tavares


Comentários

  1. Mariza Lourenço, obrigada pela publicação e pelo espaço no Escritadroide.

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