Seis poemas de Luiz Carlos Quirino
Era aquele tempo em
que
as mães sacrificavam
seus filhos
à noite não podíamos
dormir
por medo de sermos
devorados
a arte continuava
morta
deus, desaparecido
e era difícil
caminhar pelas ruas
tomadas por roseiras
sem cortar os pés ou
avistar um cometa
daí a magnitude do
fracasso
transfigurava-se em
tímida alegria
Era aquele tempo em
que
as mães educavam seus
filhos
à noite começávamos a
colher
(em meio aos cervos
degolados
na larga entrada da
porta)
os seus intestinos
inverossímil estalar
das uvas
flambadas pela poeira
em encorpados gestos
se reproduzia o
enigma
alguma virtude –
desamparo
equilibrávamos na
finíssima linha
Era aquele tempo em
que
os filhos educavam-se
no sacrifício
à noite mais morriam
que dormiam
junto aos cervos
devorados ao meio
uma arte de largar-se
à sorte
entre deuses e
assassinos
e era inverossímil
caminhar
em meio às uvas e às
roseiras
encorpados pelos
cortes nos pés
e o problema dos
cometas
em descompasso a virtude
e o fracasso
e o sentido da
alegria eram as mães.
face rubra e mãos
trêmulas
como se houvesse
esperança
como se amanhã o dia
retornasse
e a vida fosse
possível
o mundo é extremo – e
caímos sempre
que as olheiras
escrevam nos olhos
acostumados ao oco
das órbitas
os mortos febris
suportam o
peso da terra e o
nosso
os ossos por todos os
lados
apoiam as casas
vazias
vidas breves e
velozes
negociadas no escuro
cada qual como um
pequeno relógio
obsoleto
os ponteiros de
animal
jogado na máquina do
mundo
[matadouro contínuo]
o terror vindouro é
página-quebranto
pondo em prática
atávica – errando
com ênfase e
fulguração
full
or
off
que submergem no fogo
como se as palavras
frondosas
sufocassem o tédio
ontológico
de suas mensagens e
corpos
trabalhadamente
derrotados
dobrados sobre si
próprios
até que a cabeça
forme
um ponto de
interrogação
point-blank
evidenciando seu
cansaço
homens excessivamente
translúcidos
em que o dentro e o
fora se confundem
suas luzes
clandestinas nos edifícios
ofuscam os astros
desenhados no
firmamento
quem ainda possui
digitais
nas pontas dos dedos?
quem ainda possui um
nome
que coincida consigo
mesmo?
à imagem fraturada a
desrazão
ao animal sem alma a
vertigem
ao se perder o fio
perde-se também parte
do sonho
seus fluxos e
presságios
comparáveis à sorte e
seus signos
“o grito” falsificado
na parede
homens excessivamente
solares
ofuscantes em sua
promessa de vitória
doentes mensageiros
de um corpo
excessivamente
saudável
otimizado até o
limiar
entre a abundância e
a violência
– uma dívida
Ossatura
após o extermínio
foi preciso enterrar
os mortos
sob a terra profanada
mesma
mesmo com os
assassinos
andando sobre ela
ainda –
indiferentes ao choro
sorriso no canto dos
lábios –
ajudaram a cavar as
covas
e foram considerados
homens decentes
afinal de contas
todos morremos
mais dia menos dia
as viúvas obtiveram
segundas núpcias
com os estrangeiros
porque afinal de
contas
é preciso tocar a
vida
criar os filhos
constituir patrimônio
o demônio – no
entanto
sempre cobra suas
dívidas
e a terra tornou-se
estéril
as criações
definharam
e o sol calcinou até
as pedras
à noite o vento morno
sussurrava uma verdade
enlouquecedora
tornando-as insones
pela manhã todos
estavam
exaustos
sob o sol
sobre a terra que
se transmutava em sal
cercados por galhos
de carvão
árvores de ossos
a ossatura do corpo
até ela em erosão.
uma flecha
que pudesse ferir
a pobreza
da condição humana
ou um poema
sua curva – no
entanto
iria da hipérbole
ao comedimento
sem em momento algum
segurar entre dedos
o objeto
nem por isso
menos letal
canto da sereia-farol
amor fati que
nos despedaça
ainda assim amor
como posso aprendê-lo
se meus irmãos
desejam
meu aniquilamento?
ainda assim é preciso
narrar as
antifaçanhas
dos homens tacanhos
que desejam tanto e
se contentam
com tão pouco
e deterioram tudo
o que tocam
arrebatados por sua
própria imagem no
espelho
do qual trago comigo
alguns cacos
dolorosos como a
verdade
por que os amo?
porque os amo
como o lagarto ama o
girassol
e o girassol ama o
pintor
gasto minhas tintas
ressecadas
com os cegos
entrego minhas
orelhas
em sacrifício.
Língua
morta
Um filamento de ar
morno atravessa o
tempo
nos varais da casa
das lembranças
(nem chega a mover
as fronhas
estendidas)
sopra a monotonia
necessária ao poema
e à fermentação dos
dias
a alegria dobrada
numa gaveta
aguarda as tardes
solares
por agora – apenas
lama
silvos continuados da
memória comprimida
entre os sulcos da
terra
arada pelo caminhar
obsolescente dos
dentes gastos
do olhar que se
distancia
da vida em suspensão
e
enterra-se
no filete de sangue
da língua morta
usada mais para calar
do que dizer
língua não filológica
língua-apagamento
Luiz Carlos Quirino. Nascido em Porto Alegre, formado em Ciências Sociais, mestrando em Educação. Autor de poemas e contos. Publicou em 2017 uma plaquete, contendo 20 poemas, intitulada Seremos destruídos pelo princípio da não contradição, possui poemas publicados em sites e revistas eletrônicas do Brasil e de Portugal. Poemas inéditos.
Imagens: Hélio Oiticica
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