Seis poemas de Dalila Teles Veras




desobediência 


os acontecimentos 
batem à minha porta 

estridentes, insistem 
                  batem 
                  batem 

se não os atendo/atento 
insinuam-se pelas frestas 
mandam sinais 
              fumaça 
              notícias 
              megabaites 
e
              batem 
              batem 

se me finjo de morta 
explodem a vidraça 
estilhaços 
prestes a romper 
aneurismas herdados 

contrariando o mestre
(para que a língua não trave 
para que não me arrependa) 
deles construo poemas 
e
com certo engenho 
alguma poesia









poema para marielle franco 
   rascunhado na noite de sua brutal execução 


certeiros, os projéteis 
                    da janela 
                    da mira 
                    do gatilho 
atingem o alvo 

calculadas, as balas 
                   na cabeça marcada 
                   na mente visada 
                   na ação inadequada 
cumprem a função de calar 

não foi apenas o sangue 
jorrado na execução 
não foi apenas a carne
(negra, para não fugir das estatísticas) 
caça abatida no voo, ração 
provimento dos sem razão 

ali, naquele automóvel 
ensanguentado 
e
incômodo 
foi abatida a utopia 
       calada uma voz que era de muitos 
       derrubado o pilar da esperança 
       executada a possibilidade de redenção

[14.03.2018]









penitência 


três... três facadas no pescoço 
estava cansada dele, disse a mãe 

corpo enrolado no edredon
fogo ateado 
livrou-se do fardo 

lavou-se, penteou-se 
postou um salmo no feicebuque









payssandu 
sp dois cinco dezoito 


há dias 
      assim
desmoronamento 
e
escombros

os meus 
      por saber
os deles 
      por sofrer 

dor de ver 
dor de viver









foto síntese 
  sobre uma imagem de antonio augusto 


brasília 
:
improvisado 
um muro 
divide os brasileiros
(na calada do escuro 
seres invisíveis 
o construíram) 
feiafalsa linha 
a desafiar curvas 
e outras formas 
de beleza 

um muro 
a escancarar a chaga 
cada vez mais visível 
cada vez mais chaga









recusa 


há qualquer coisa 
de interlúdio 
nesta ópera 
trágica/bufa 
sem libreto
só prelúdio 
para a qual 
não fui convidada

não ouço
não quero
não vou


[poemas do livro Tempo em fúria, Alpharrabio, 2019]















Dalila (Isabel Agrela) Teles Veras, natural do Funchal, Ilha da Madeira, Portugal (1946); vive no Brasil desde a infância: reside e trabalha há 47 anos na cidade de Santo André, SP., onde atua como ativista cultural, livreira e editora; em 2004, recebeu o título de Cidadã Honorária do Município de Santo André, outorgado pela Câmara Municipal; coordenou, de 2007 a 2017, o Fórum Permanente de Debates Culturais do Grande ABC; integra, pelo terceiro mandato, o Comitê de Extensão Universitária da Universidade Federal do ABC, como representante da comunidade externa; é casada com Valdecirio, mãe de Carolina, Isabela e Alice e avó de Filipe, Murilo, André, Iara e Catarina. É autora de seis livros em prosa e de dezoito de poesia, sendo o último, Tempo em fúria (Alpharrabio Edições, 2019), do qual são estes poemas.

Imagem: Mo

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