Quatro poemas de Ésio Macedo Ribeiro - do livro UM OLHAR SOBRE O QUE NUNCA FOI:
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você deve querer sua vida como eu quero a minha / cuide dela / da sua / eu faço
da minha a melhor // a vida nos foi dada / a sua / a minha / mas ela requer
adubo poda rega como qualquer uma // a vida deve ser pintada todo dia porque o
sol sempre vai embora / é preciso correr atrás da luz como aquele holandês
doido / é preciso pôr no papel como aquele norte-americano que falou da relva /
é preciso esculpir como aquele francês que teve uma mulher louca // não é à toa
que a vida / esta coisa infinita de nasce-renasce / precise sempre // é preciso
dar-se a ela / contemplá-la / beijá-la como quando se olha para as estrelas /
como se leva os lábios aos rostos e bocas // a vida é sua / tome-a / então /
como se toma um livro na livraria / e depois o lê e o guarda // a vida é muito
maior que a morte / que é só um flash / a vida demora / mas não se pode cansar
dela / como se pode cansar de comer e beber e de abraçar os que vêm // quando a
vida vem / chega sem caminhar / arrastando-se / a vida nos traz do fim para o
começo / a vida começa morta / dependente / depois de solta ela é sua // todo
começo é / portanto / morte / tropeço // olhe para sua vida desde o começo /
olhe para o que não estava exposto — o enterrado — // a Mãe é o túmulo da vida
/ constrói o que estava morto com desapego e resignação / não é fácil
desenterrar o que estava dentro / é outro sacrifício // a vida começa natimorta
/ apagada / se você entender isto que te digo / muita ajuda para sair do
labirinto / para abrir a caixa de Pandora / decifrar o fio de Ariadne // a vida
— repito! — é sua sem nenhum simulacro / romper com ela é pará-la /
defenestrá-la / reduzi-la // a Mãe-Terra é o túmulo da morte / e o mistério se
nos afoga |||||||||||||||||||||||||||||||||
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eu vou / mas fico no que deixo / não quero ir quero ficar / mas vou / eu tenho
que / o tempo se me leva / não quero / mas vou e volto / porque fico no que
deixo / estou maior e melhor / mas tudo dói / será que alguém olha isto e vê o
que eu vejo e não apago? // eu sempre fico no que deixo
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I
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para abolir uma coisa que não se quer / é preciso sabê-la / adestrar o
pensamento e o conhecimento para afugentá-la // uma coisa em fuga é o
escrutínio do sensato / do que tem faro de cão / dele / Cérbero / e está feito
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II
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para errar um movimento / basta conhecê-lo / fazer bem feito // para um
movimento parvo destro infinito / basta encontrar o fio de Ariadne na boca do
Cão que vigia a porta / se da saída ou da entrada você é quem vai dizer
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III
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uma cor não se colore sozinha nas latitudes da tela / para somá-la é papel
diminuí-la / o senão das sutilezas / se barro terra ou azinhavre / se vento
fogo ou trovão / se sangue de dedo cortado / embarque no avião / use planos de
aterrissagem e as pistas do seu condão
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IV
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se se veste de si mesmo não há outro patrocínio / a tinta é a escarlate / o
mote é seu destino // o si mesmo ao si mesmo como eles se apresentam? /
vestidos de odalisca ou como as mulheres da Idade Média / estas freiras não
sabidas? / para o si mesmo basta o eu!
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V
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para combinar o encontro do velho com o novo há formas e anomalias / se se
tange a corda no pescoço muito vezo fica por traçar / se a suposta não quer
mais vir tem que interrogar / fazer seguir / fazer ficar // com o cajado na
pedra / mais fácil é o deslizar no meio do rio no meio do mar
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VI
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da ideia que lhe fica nem embuste nem desgaste / tudo se opera no desempate //
ponha a trouxa na cabeça / desça da ponte / pegue o rio / entristeça suas
roupas com movimentos de ladainha como quando chama o sol para o anil // rompa
voltar com as luzes que se compra nos bazares e a ideia que ficará é a de que
dois mais dois sejam o que você quiser ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
VII
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na largura do bonito / também cabe o feio o disforme o lambido / se se usa a
outra face / desculpa-se o traído / mas na linha do pescoço a sombra da foice
muda os olhos / muda a cor do que está escondido e que ninguém sabe // daí foi
que surgiu a chave / a clave de sol / o paratodos / o estribilho
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VIII
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mostra coisas que o outro não quer ver / mas não se mostra / só o que já está
feito / o do outro / o colhido // desencolha-se deste canto / solte os ombros /
alucine / mostre as pernas / siga o jogo cujo narrador te maltrata / ultrapasse
o horizonte / dê linha pro papagaio / desamarre a emboscada e siga pro
descontrolado destino |||||||||||
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coisas em que eu acredito são coisas válidas // é preciso / entretanto /
encontrar o vazio // para entrar: / a fresta / a ponte / o caminho de terra / a
rua estreita ou larga // distinguir onde caber-se / onde tomar posse /
pertencer às coisas vãs: / espraiar-se nos deleites / deslizar nas coisas
fáceis / (e também nas cruéis) / delimitar com urina / com espinhos / com a
própria in-vi-si-bi-li-da-de // o vazio é alívio / ambiente sábio para desaguar
/ livrar-se dos desejos e das posses como se beija quem se ama sem receber nada
de volta // dar-se é libertar espaços / trazer o comunicável ||||||||||||||||||||||||||||||||||
Ésio Macedo Ribeiro
é doutor em Literatura Brasileira pela USP, escritor e bibliófilo. Autor de,
entre outros, E Lúcifer dá seu beijo
(1993), Marés de amor ao mar (1998), Brincadeiras de palavras: a gênese da poesia
infantil de José Paulo Paes (1998), Pontuação
circense (2000), O riso escuro ou o
pavão de luto: um percurso pela poesia de Lúcio Cardoso (2006), Estranhos próximos (2008), Drama em sol para o século XXI (2011), É o que tem (2018), Um olhar sobre o que nunca foi: (2019); e organizador e editor da Poesia completa de Lúcio Cardoso (2011),
dos Diários de Lúcio Cardoso (2012),
de O vento da noite, de Emily Brontë,
trad. de Lúcio Cardoso (2016), e, com Marília de Andrade, de Maria Antonieta d’Alkmin e Oswald de Andrade:
marco zero (2003).
Imagens: Maria Leontina
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