Seis poemas de Lia Scorsi











SACOS DE TRAMAS LARGAS

Escrever, meu amor, é meu manifesto às palavras por que me apaixono e penetram minha alma. Meus ouvidos alertas silenciam fundo com esta ou aquela ouvida de passagem. Sempre foi assim. Elas me seduzem, flerto com elas. Quisera fossem matéria orgânica, concreta. Não pararia de acariciar seus pelos macios, sua pele clara.
Inventaria novos nomes e sopraria em seus ouvidos. As penetraria. Ficariam arrepiadas e grávidas de outras palavras.
Para não esquecê-las, teceria um grande saco de tramas largas, com fios do espaço-tempo a aprisioná-las. Nele armazenaria palavras amantes e amadas.
Quando as desenho no papel ou na tela reato meu romance com cada uma delas. Minha forma de retê-las.


*


Amo o espaço do Amor por ti em mim.

A cartografia do corpo de espera. Território da esperança que estudo todo dia com afinco enquanto medito e repito e repito para mim mesma da solidez do solo de ti.

Faço o mapeamento de emoções contraditórias que habitam a casa do sonho – o conjunto de pequenas pérolas em torno do fino pescoço ao menor sopro cortante, ei-las espalhadas no assoalho da sala.

Recolho uma a uma com a dedicação e delicadeza do eunuco que ama – um beijo na testa e a bela adormecida desperta – encontro em novo adorno.

Amo o amor germinado sólido em mim, milhões de partículas elementares que não aceitam divisão, bloco de energia em tua direção.

Meu amor é feito de silêncio como o movimento do feto dentro do ventre, o mover-se só na vida das águas quentes.













Repentinamente ela despertou e viu-se nua
Nenhuma roupa cobria aquele corpo
Em espanto olhou-se e sentiu vergonha do que via

Agarrou os cabelos gritou em desespero
Ajoelhou-se então e chorou um rio de perdão
Que invadiu o quintal a rua o quarteirão o matagal

Em dias o terreno absorvida a água
Tornou o chão umedecido e húmus
Da terra nasceu um pé de Luz

Impossível cruzar o jatobá gigante
Com o pequeno manacá da serra
Ou
Querer Bach tocando com um medíocre aprendiz de piano


*


O MOVIMENTO DESCENDENTE DO QUE MURCHA
É A PROCURA ORIGINÁRIA DA CASA DO SILÊNCIO
                                          ONDE O QUE PENDE PEDE                     
O SONO AQUÁTICO
                                      ATEMPORAL OLHO DE PEIXE
PREITO, PESO, RESPEITO
                                         MOEDA NA BOCA DE PEIXE













apaixonei-me pela Dor
quando a vi de relance no leito da casa ocre
tomei o seu pulso fraco
toupeira nariz-de-estrela

respirava aos tranquinhos
escondendo-se
não sei se com vergonha
por ter sido flagrada

protegeu-se de meu olhar complacente
a hélice espirala o tempo da esfera
e nela uma lágrima redonda, esférica
nasce no oval do olho

talvez quisesse outro destino
um sorriso
gargalhada
um enlevo, um suspiro

como seu lugar é o nada
às vezes, erra e para em um corpo
uma face, uma boca
seu modo de existir e se fazer visível

surpreendi-a pálida, encolhida, assustada
quis abrir-lhe os dedos interditados, endurecidos
ouvi um quase grito
e não era de revolta

umedeci algodão com soro
limpei suas ramelas amarelas
a febre, fogueira, a ferida
todo suor que escorria
em seu semblante feição da agonia

falou-me de sua gênese
não fora escolha sua
a natureza assim lhe dera a sina
de afinar morte com vida


*


TOPOGRAFIA AMOROSA

É SEMPRE O MESMO AMOR
CONSCIENTE EMULSÃO DE VIDA
INCONSCIENTE PULSÃO DE MORTE








Lia Scorsi (Rosalia de Angelo Scorsi), doutora em Educação pela UNICAMP (Campinas – SP), na área de Metodologia do Ensino com ênfase na pesquisa das linguagens da Arte: literatura, cinema, fotografia, artes plásticas. Escrever, pesquisar, refletir é um vício sem cura. A palavra nomeia o mundo em que vivemos e a nós mesmos: Quem somos? Para onde vamos? Sou? ... Aposentada, continua seu trabalho, não mais na Academia, agora, sem cercas, na vida cotidiana, no dia-a-dia.







Imagens: Ligia de Medeiros
Todos os direitos reservados © Ligia de Medeiros








Comentários