Três poemas de Ângela de Almeida











                                                  
                                                           Ode a Ricardo Reis

         onde deixaste as rosas
         Mestre
       
         o dia é breve
          e os meus passos
         alheados e  tardios

         e as minhas mãos
                                          ó as minhas mãos
         privadas das fragrâncias que cuidavam
          dos rios enamorados e dos amantes
          contemplando as águas
                                                       nas cordas de violinos
                                                       azuis
          e breves      ó tão breves
         ainda mais breves que o dia

      inédito, 2019











                                                       a Ricardo Reis

comecemos o dia a oriente junto às ravinas
com as mãos envoltas em anéis de água
e olhemos o azul e acetinado manto
e fiquemos ausentes e livres
e suspensos
e com as mãos envoltas em anéis de água

abracemo-nos simplesmente
e continuemos a olhar o azul e acetinado manto
como se o tempo fosse este momento
assim liso e pasmado

e afinal não nos abracemos, mas olhemos
simplesmente os fios de água na pele
deste dia diferente e fiquemos assim
contemplativos e ausentes
enquanto a água corre e não morre

in caligrafia dos pássaros, 2018

     










passam os últimos minutos
e passam silenciosos e sombrios

e ainda os últimos rouxinóis
e passam afónicos e aflitos

e passa uma orquestra estoirada
mais as horas com passo apressado
e a ventania dos quintais
e as beatas dos cigarros
e um velho abrigado à sombra
e uma criança que vem da folia

e passam as uvas do pomar

e passa o casal da mercearia com apressado passo
e também o poeta da sílaba ardida
e ainda o músico com uma flauta em chamas

e passa o frio
e passa o temporal

mais as flores que enfeitaram o dia

e passa a pressa
e passa o vagar

e passa o tempo
e passa a pausa


e também os namorados enlaçados
e ainda os que já não se enlaçam

e passam cestos com beijos

e também um ramo de rosas abatido
mais os copos roubados ao jantar
e ainda as garrafas esganiçadas aos gritos
e também as frases derrotadas

e passa a espera
e a espera passa

e passam os tambores gelados

e também um rio em lágrimas
e ainda outro rio em lágrimas passa

e passa uma cascata de ruídos
mais um barco estilhaçado
e um pescador com passo lento
e ainda uma oração vencida

e passa a notícia amparada pelo jornal
e também passa o jornal viúvo da notícia

e passa um cão a morder o país
e o país mordido pelo cão passa

e ainda um livro cativo na garganta

e passam as palavras condenadas
e o silêncio num tabuleiro de sons desfeitos
e ainda o tempo e os cheiros
e também as cores combalidas
e os sabores consumidos
numa taça de romãs a arder

e passa o riso de um pássaro migrante
e o riso de um pássaro migrante passa

e também o choro ofegante de uma árvore
e uma mulher abraçada a uma janela
mais um homem com o telhado aos ombros
e ainda um circo sem palhaço

e passa uma roda
e outra roda passa

e também a última carruagem
dum comboio alucinado
e ainda uma urgência pregada no peito
duma flor estoirada

e passa uma praça
e passa um jardim

e ainda um campo imenso
de gerberas brancas


e uma guerra cabisbaixa passa
e também uma paz comovida

e passa uma religião
e outra religião passa

e ainda uma língua ao lado de outra língua
agarradas a uma Constituição

e passam tratados
e passam leis

e também uma Declaração amarrotada

e ainda um manto de gente
com a emoção em cinzas

e passa a ardilosa razão

e os soluços de uma confissão de amor

e passa moribunda a confissão de amor

e passa ela
e passa ele

e vem a noite
e eles continuam a passar

e rompe o dia
e eles ainda passam

e trazem alfabetos e segredos
e no colo seguram o medo

e passa a esperança
e passa a vida

e ao longe no mar um navio passa

e um navio passa ao longe no mar

e passa tão longe o mar desse navio

e de repente

passa um passo de encontro ao navio

e de repente

outro passo passa

de encontro ao mesmo navio

e também o caminho e a correria

e passo eu e corro para o caminho
e tu passas comigo a caminho do navio

passas comigo e tudo levamos nos passos


passas comigo
e tudo fica

e tudo fica

in caligrafia dos pássaros, 2018.













Ângela de Almeida é uma investigadora, ensaísta e poeta portuguesa, natural da cidade da Horta, onde viveu até aos 16 anos de idade. Estudou em Lisboa, sendo doutorada em Literatura Portuguesa e, nesse contexto, colabora com organismos regionais e nacionais, participando também em colóquios e congressos, promovidos por instituições portuguesas e europeias. Anteriormente, lecionou no Ensino Secundário e no Ensino Superior, foi editora e assessora para a Cultura. No domínio do ensaio, é autora de Retrato de Natália Correia (1993, Círculo de Leitores), vários estudos introdutórios a obras da mesma autora, A simbólica da ilha e do Pentecostalismo em Natália Correia (2019, Letras Lavadas) e Natália Correia, um compromisso com a humanidade (2019, em publicação). Tem, no prelo, o ensaio, Censura e estilo na Literatura Portuguesa do século XX, resultante da conferência, que apresentou na Universidade Sorbonne-Collège de France. No domínio da poesia, publicou: Sobre o rosto (1989), Manifesto (2005), A oriente (2007), Caligrafia dos pássaros (2018). Publicou também a narrativa poética, O baile das luas (1993) e dois livros de viagem.






Imagens: Maria Helena Vieira da Silva


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