Seis poemas de Sandrio Cândido
Origem
quando nasci eu não
era negro
ninguém botou
reparo na minha cor
nenhum anjo acudiu
para avisar do meu
destino
era agosto
só a seca
sobrevivia
o pai emocionado
embrejou os seus
olhos
quando a bisa
gritou
é saudável o menino
outro cortador de
cana-
sentenciou o
vizinho
- valha-me deus -
filho meu vai
estudar
bote fé no que
digo -
deus te ouça
respondeu a mãe
sorrindo
tudo era seca
nem água pro gado
tinha
é sina inescapável
gritou o vizinho
também ele
entendia
das rodagens
percorridas
pode inté sonhar
mas é sina cumpade
nenhum anjo
apareceu
para cortar meu
umbigo
e dias depois
o pai teve que
partir
era preciso
garantir
o leite da família
mas porque nasci
ao menos naquela
tarde
no peito da mãe
a esperança foi
coada
e o mesmo aconteceu
quando nasceram
minhas irmãs
e eu ainda não era
negro
nem sabia coisa de
poesia
Desconstrução
por
muito tempo tentei ser branco
comia
comida de branco
vestia
roupas de branco
sonhava
sonhos de brancos
por
muito tempo sonhei ser branco
rezava
orações de branco
brincava
com brinquedos de brancos
feitos
para louvar os brancos
por
muito tempo quis ser branco
assistia
programas de brancos
lia
histórias de brancos
pensava
ser um outro branco
por
muito tempo desejei
e
mesmo fingindo ser branco
e
atuando como branco
tinha
sempre algum lugar
onde
branco entrava
e
eu do lado de fora esperava
Fragilidade
menino
homem tem de ser forte
dizia
o pai do menino
chore
não moleque
homem
não carece disto
de
noite
debaixo
da barriga vazia
chorava
o menino
o
pai com o chicote ensinava
lágrima
não cabe em olho de menino
menino
homem tem de aprender a lutar
não
leva desaforo para casa
não
apanha de ninguém
brincadeira
de menino homem
é
arma de gente grande
menino
homem escutava
as
coisas que seu pai lhe dizia
nunca
um abraço
isso
não era coisa de homem
menino
homem silenciava
lá
dentro doía
já
tá grande
precisa
aprender a bater
não
caminhe assim
descruza
essas pernas menino
não
mova tanto as mãos
menino
homem tem de vestir calça
jogar
bola
brincar
de carrinho
não
pode brincar de boneca
nem
de casinha
tem
de levantar a cabeça
andar
reto, estufar o peito
menino
homem cresceu
sem
saber o porquê de tudo aquilo
-
no jornal a notícia
menino
homem brigou na rua
menino
homem foi morto
ninguém
sabe o porquê -
menino
homem desde criança
só
violência aprendeu
- menino
homem respondeu
da
única forma que sabia
- ninguém
sabe o porquê -
ninguém
sabe que menino homem
carecia
de afeto
menino
homem não falou
pois
não sabia explicar
menino
homem era triste
só
que ninguém sabia
rodeado
de outros meninos
menino
homem era sozinho
menino
homem só sabia
que
não podia apanhar
menino
homem tinha medo
de
não ser menino homem
e
o medo do menino homem
era
um buraco na vida
só
que ele não sabia
dizer
os medos que sentia
menino
homem não sabia
de
outra forma de ser menino
ser
menino homem frágil
ser
menino homem esquisito
toda
a vida menino homem
teve
de ser isto e aquilo
menino
homem foi sempre
uma
grande mentira
e
menino homem só queria
ser
humano menino
Imigrantes
“Eu não moro mais
aqui/ Nem aqui quero morar/
Ô beira-mar, adeus
dona,/ Adeus riacho de areia”.
Coral Trovadores do Vale
“Quando ao longe me voltei/ a
minha casa/ era um ponto branco”
José Tolentino Mendonça
Para minha vó Corina e sua casa
no vale
Na primeira vez que
regressamos
a casa ainda estava
de pé.
Os telhados
cantavam
pássaros cobriam as
janelas.
Se não fosse o
silêncio lá dentro
ninguém saberia que
aqueles quartos
estavam
desabitados.
Quando a vizinha
nos avistou
fez uma festa
danada.
Ela contou que o
ano foi bom.
_choveu muito e a
roça cresceu,
Deu até
abobras d'água!
Todos sentimos
tremenda saudade!
Na segunda vez que
regressamos
a casa seguia de
pé,
já os telhados não
cantavam
haviam ido de
encontro ao chão.
A vizinha já não se
lembrava de tudo
haviam transcorrido
tantos anos.
Daqueles que
sentiram saudades
poucos
restavam.
Na terceira vez que
regressamos
a casa tinha
perdido a cor.
Janelas e portas
estavam rachadas
e a vizinha nada
pode contar.
Também ela havia
partido
fez-se silêncio,
memória apagada.
Foi então que nos
sentimos estranhos
onde tinha sido o nosso lar.
Na quarta vez que
regressamos
a casa já não
existia,
só as ruínas
perduravam.
A luz trêmula
alumiava na memória
a criança jogando
bola,
o mesmo rio corria
lá embaixo
mas em nós, algo
havia mudado.
Um menino nos
perguntou
- ocês quem são?
Vovó espantada
tratou de responder:
- sou a dona daquela casa!
A tristeza
abriu-lhe um rasgo
quando ouviu a
criança responder:
- minha senhora,
nunca teve casa aqui!
Só naquele dia
percebemos
o tempo escorrido
em nossas viagens.
Nossa geografia
havia mudado
pertencíamos a
outro lugar.
Na quinta vez que
regressamos
havia passado
muitos anos
nem me lembro
quanto tempo.
Levei vovó dentro da saudade
mamãe não
regressou.
Minhas irmãs não se
lembravam
que tínhamos
nascido lá
e meus sobrinhos
sequer ouviram falar.
Cansado me sentei à
sombra da goiabeira
fiquei pensando nas
andanças perdidas.
Lembra-se daquela
criança?
Também ela
sentou-se comigo.
Trazia em mãos as
roças engomadas
vestia um terno de
idades
tinha os dedos calejados.
- senhor, que faz
aí sentado?
outra vez me
perguntou assombrado.
Ao ouvi-lo
debrucei-me na terra
tentei do alto comer os bocados
para agasalhar
as grotas que me abriam
a falta dos meus
antepassados.
Vi o rio descendo o
morro
a cana crescendo na
margem do córrego
o pai tocando o
gado
a mãe comendo
laranja.
- Seu moço trate de
me escutar
pois não vou dizer
outra vez,
faço o mesmo que a
minha vó
sou herdeiro
daquela casa.
Enquanto me rasgava
a palavra
apontei o balanço
dependurado.
- Era ali que
brincávamos!
Também ele trazia o
olhar cansado
desesperado de
tanto viver.
Naquele dia ele
pode me entender
pois já seu riso
estava trancado.
- Senhor, aquela
casa era minha casa,
eu também fui
parido ali!
Na fotografia
daquele moço
cresciam paisagens
de outros lugares.
Na sexta vez eu não
regressei.
Da casa nem memória
restava.
Não tive tempo de
contar aos meus netos
que ela era azul,
não falei da
roseira à beira da janela
por onde eu
cheirava o mundo
nem da goiabeira no
quintal.
É a mesma goiabeira
debaixo da qual um
homem senta
tira a flauta da
garganta
e põe-se a cantar
versos tristes.
Quando alguém
pergunta o que ele faz;
responde
ciscando o tempo:
- busco aquela casa
perdida em outro
mapa.
Na sétima vez
ninguém regressou
meus filhos já
estavam partindo
meus netos pertenciam à outras paisagens
a casa terminou de
morrer
pois dela ninguém sentia saudades.
Menino homem
ser neste corpo
foi um trajeto
demorado
primeiro na escola
aprendi que menino
homem
não podia ser
delicado
não te sentes assim
não cruze essas
pernas
depois no trabalho
aprendi que menino
homem
tinha de ser grande
ande assim
estufa o peito
menino
cadê sua força
trabalhe
depois na igreja
aprendi que menino
homem
tinha de mandar
homem de cabelo
grande
isso não é coisa de
macho
depois na rua
aprendi que menino
homem
tinha de bater
feche bem as mãos
aprenda a carregar
peso
não chore
e ninguém disse
que menino homem
podia amar
que podia ser gente
que podia ser
frágil
que podia ter medo
que menino homem
não devia ser macho
Mística
eu fui pássaro em deus
eu fiz ninho em seus
olhos
eu bordei a saudade
de lá eu vi escurecer
vi quando na
encruzilhada
a bisa deixou sua
comida
e vi que deus sorria
eu vi também o pai
quando cana cortando
pensava nos estudos
dos filhos que tinha
eu vi também a mãe
levando lenha nos
ombros
furando a lapa
em busca d'água
eu vi que deus chorava
quando a seca vinha
eu fui pássaro em deus
vi partir da roça
tantas gerações
eu vi o forno apagar
porque já não tinha
goma para o biscoito
nada pra assar
eu fui pássaro em deus
eu ouvi o silêncio
eu cavei a pele
eu me doí
eu pensei que deus
não havia de existir
eu vi de noite a mãe
trazer o copo de leite
eu vi o pai carregar
tijolos e cimento
eu falei com a avó
ser negro é sina
ele disse ser festa
o corpo que eu tinha
eu vi a mãe sorrir
na novena do divino
eu vi o pai chorar
no quarto escondido
eu fui pássaro em deus
eu aprendi a poesia
eu aceitei minha pele
eu peneirei a vida
Sandrio Cândido (Minas Novas, MG, 1991),
afro-brasileiro, professor, poeta,
graduado em Filosofia. É autor do livro Epifania (Editora Patuá, 2014), e
possui poemas publicados em outras plataformas digitais (Revista Germina,
Mallarmargens, etc..) atualmente reside
na cidade de Cali, na Colômbia. Email: sandriocandido@gmail.com
Imagens: Norman Lewis
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