Dez poemas de Gilcevi




o amor

era uma quinta-feira santa e dei-lhe três tiros nas costas
ele ficou agonizando caído no beco
a mão aflitiva nas tripas violadas
cheguei perto pra dar o arremate
: mais três na cara


antes de fugir rumo à manhã
ainda pude ver de longe
a multidão se aglomerando
espoliando a aljava o continente
a poesia agora menos
que um fantasma






infância X (barreiro de cima)

o meu pai teve a mãe
& o meu pai teve o pai
só que para ele ter o pai
ele teve os avós
a única viva é a mãe da mãe do meu pai
a bisa dasdor que matou o marido com o pilão
pra se casar com o primo
ele arrancou uma costela dela
e do osso nasceu uma amante
que com ele teve mais vinte anti-heróis
que sabiam amansar o azul e a pólvora
e povoaram o barreiro

deus viu que isso era bom
e foi-se embora






linhagem

beira br
beirada de linha
cria da palafita de asfalto
saco linhagem lanhando o lombo
o velho caminha sob o muro da siderúrgica
fala uma língua ilhada
ilíada afiada
entre a gíria o jongo e o carbono
negocia no ferro-velho a lataria catada
tarikas cuspidas pelas fornalhas


pega os trocados do adelo
e ancho sai cantando um calango
meu avô era malombe
minha avó era benguela
ela era dona preta
ele era zé pinguela






canção da véspera

amanhã às 5 da tarde verei nas escadarias da igreja são josé
o surdomudo devorando a hóstia com fervor
voz alguma sairá da boca dos insetos
o gato uma sombra com pequenos dentes
exigindo comida
o homem um bicho com uma faca cheiro
de vômito e merda uma sacola
cheia de latas amassadas gritando não eu não sou
o pesadelo eu sou o tormento
talvez ainda exista o oceano
ao sul da multidão que sonha nos beliches
talvez não haja mais fantasmas amotinados
dentro do meu rosto que nunca dormiu 
e que a deus pertence

amanhã o amigo baterá à porta
com cerveja e a nova tradução da balada do café triste
os olhos sem dizer palavra
aquele que na vida nunca levou porrada
altas na noite as vozes sem altar
beberemos durante horas como se nada
fora do calendário os anos
prescrevendo todos os crimes de amor
ele falará sempre desconfiei
que havia estrelas atrás do céu operário
depois irá para casa e morrerá






a poesia nunca salvou ninguém

no último andar do prédio
meus amigos
2 cachimbos
100 pedras de crack

(minha morte passeia entre eles
com um cigarro frouxo na boca)






retrato do poeta tentando encontrar deus


Assembleia de Deus Pavio que Fumega
Igreja Automotiva do Fogo Sagrado
Igreja Pentecostal Socorrista Evangélica
Casa de Oração Pentecostal dos Afastados

Igreja da Cruz Erguida para o Bem das Almas
Igreja Abastecedora de Água Abençoada
Igreja Neopentecostal Navegando no Espírito
Igreja Evangélica Pentecostal a Última Embarcação para Cristo

Igreja Pentecostal Jesus Vem, Você Fica
Igreja Evangélica Pentecostal Ceio Eu na Bíblia
Igreja Pentecostal do Fogo Azul
Igreja de Deus da Profecia no Brasil e América do Sul

Igreja Evangélica Batista Barranco Sagrado
Comunidade do Coração Reciclado
Igreja Sino de Belém Missão e Premissas

Igreja das Bailarinas da Valsa Divina
Igreja Evangélica Pentecostal Cuspe de Cristo
Igreja dos Bons Artifícios






a festa


no chão do patíbulo o anjo recolhe
o sêmen do enforcado

a morte
tendo cumprido seu papel
foge dos homens
que gargalham atiram
ovos tomates






sangue ruim

I
clã dos silva

da parte do pai vinham os de pele escura e parda 
índias pegas no laço ladrões d’além mar escravizados capitães e riobaldos
idólatras do cobre da preguiça e das armas
malvivendo amontoados naquela casa pau a pique senzala
partiam para o leste sob a tutela da noche oscura
levavam na matula a bússola a meiota de cachaça
carcaças de pequenos animais
sapienciais pergaminhos: eis que vou agora dormir no pó
se me procurares pela manhã já não existirei


II
clã dos souza

os irmãos da mãe na fronte acuada traziam sardas
lixo branco escorraçado das terras de lund
lazarones no monturo do morro das pedras
ralé de pés rachados sonâmbulos na encruzilhada
malvivendo amontoados naquela casa adobe senzala
pico e cola arranhando as grades da alma
falavam uma gíria bárbara e cheia de fúria:
o terceiro mundo vai explodir quem tiver de sapato não sobra






infância IV  
(a hard rain’s a-gonna fall)


a tempestade foi tão forte
que as janelas ganiam nos batentes
como se estivessem sendo curradas

o vento levou embora o telhado o século o ventre

e até os fantasmas se esconderam
dentro da memória do menino




  

infância IX (o livro dos mortos)


reginaldo tomou formicida roberto tiro da polícia
ronaldo gauche endividado no amor e no baralho
rubens o morto virgem sob os aguapés da pampulha
rosa cardíaca neusa infartada
euclides caduco nélson chagas
renato cabeça a prêmio por pedra penhorada

márcia sob as rodas do carro mirileide foi violada
lucas era bom no ringue mas punho não para bala
alice estava no lugar errado flávia na fila do sus
vinha eclipsou o ventre chico não teve escolha
preto chacinou o natal e se foi com o berro na boca


no início era o verbo
morrer











Gilcevi é poeta e músico. Autor dos livros Os ratos roeram o azul (Letramento, 2016) e Retrato do poeta quando devedor do aluguel (2018). Atualmente, é vocalista da banda Cadelas Magnéticas.


Esculturas: Gustav Vigeland [1869-1943]

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