Cinco poemas de Wender Montenegro














Da humana esperança
ou O impulso de Sísifo

E haverão de anunciar a cura
para os pulsos do homem.
Suas veias sem cor, a dor amortecida,
o adormecido amor, seu game over
- dose cavalar de medo;
asas decepadas,
pedras atiradas na própria vidraça,
a fragilidade no lançar as redes,
no arrastá-las à fé
– fraco soco no vácuo;
lâmina e penhasco,
seu jogar-se-do-alto
– Sísifo ao reverso
a despeito da falta de pedra-sustento
à subida da vida.
E haverão de devolver ao homem
o impulso dos pássaros.






Metapoema orgásmico

1.
Fazer amor como quem faz poemas...
Desfazer a cama,
que um poema bom é uma cama desfeita,
suspender o fôlego acima da imagem
que se quer perfeita,
esse tato exato e exacerbado;
o impacto dos corpos
consumidos quentes
numa mesma página;
lançar as sementes,
que um poema bom não se basta a si mesmo,
está prenhe de mundos,
de figuras raras de linguagem e verbo
que saltam na pele,
no corpo do outro em puro despudor,
que escrever poemas
é fazer amor.

2.
O céu da carne arde
e os anjos anunciam
– músculos retesos –
a sede do verbo,
o desejo.
A carne entregue ao fogo
seus olhos,
instintos e fome.
E por toda a noite
o apetite cresce
e o dia ainda o toma por voraz;
o centro voraz do apetite
excitação e sal.
Símbolos eretos
lubrificam imagens
metáfora em brasa,
metonímia acesa
nos lençóis.
O sangue move a roda da linguagem
estímulos rítmicos
contrações verbais
orgasmo
alavanca de luas e sois.
O voo da língua por cima da morte
reafirma a vida;
o que não pode ser dito
na sombra.
A poesia é um orgasmo múltiplo.












Je suis Abdullah*

“Mesmo que você me dê todos os países do mundo, o que importa se perdeu.”
[Abdullah Kurdi]

Aos meninos sírios
filhos de Abdullah,
- Dédalo em Kobane,
a cidade-front –
fugindo da guerra
dos vis labirintos
do Minos-Islã.
À esposa Rehan,
à Galip e Aylan,
Ícaros implumes
dormindo a caminho
da ilha de Kos.
Três anos apenas
e Aylan já sabia:
não há que ter visto
para entrar no céu.
Por isso o menino
deitou e dormiu
na praia, nas vagas
do mar de Ali Hoca.
Dorme Aylan e, alado,
- os remos de cera,
as asas molhadas,
o asilo negado –
ganha o céu de estrelas,
e aos flashes do mundo,
faz o mundo inteiro
recolher seu corpo
de encontro a seus corpos,
como em La Pietà.
Abdullah é morto,
os corpos se empilham
sobre sua voz,
já não constrói fugas,
que estas já lhe sobram;
seu maior desejo:
voltar a Kobane
e enterrar seus sonhos,
sua mulher, seus filhos,
no seio da terra
de onde quis partir.


* Abdullah Kurdi, pai de Aylan e Galip Kurdi, e esposo de Rehan, refugiados sírios mortos na travessia do Mediterrâneo.






Ave-poesia

1.
Ave-poesia, voa,
vai a ver se o amor já vem.

2.
Ramo de versos no bico,
voo em ritmo preciso,
asas molhadas - metáfora.

3.
À vid’ávida, retorna
de terra inóspita - fria -,
sem coração pra repouso.













Poema para guardar de cor

Bem mais que tocar com os olhos,
bem mais que mirar a paleta de cores,
ver é alterar o que é visto,
abraçar o mar mais do que contemplá-lo.
A cor da piedade já não basta;
a comiseração em si é pálida.
De que outro modo ver a cor dos pulsos
senão no pulsar?
A cor da febre, mais do que amarelo, era delírio;
e o lilás das águas-vivas,
se estoura na pele,
é que se faz mais vivo.
Descolorir algemas nos dará delírio.

















Wender Montenegro (Brasil, 1980) nasceu na Lagoa da Luz e mora na Boa Esperança, Trairi-CE. É Professor de História e Poeta. Em 2008 publicou seu primeiro livro de poemas, Arestas (All Print Editora - São Paulo/SP). Em 2012 publicou Casca de nós (Editora Penalux - Guaratinguetá/SP), e Livro-arbítrio (Rubra Cartoneira Editorial – Londrina/PR). Tem poemas publicados em algumas revistas e espaços literários, como Triplov (Portugal), Germina, Eutomia, Mallarmargens, Blecaute, Diversos Afins, dentre outros. Tem a publicar um novo livro de poemas intitulado Mirante Míope.








Imagens: Deborah Dornellas
Todos os direitos reservados © Deborah Dornellas


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