Cinco poemas de Maria Helena Latini
OFÍCIO
O ofício do escritor
é o de retirar
de uma inconsistência
de vento,
um corpo
de letra.
Vês?
Já é alguém
(um personagem)
que abre a porta
e entra para o chá.
Outros seres
– ainda inominados,
inquietos
e solenes –
aguardam,
na mesma sala branca,
por um mínimo sopro.
UM HOMEM
Era magro e brilhava.
Caminhava com movimentos rápidos,
angustiados.
Talvez tivesse contas pra pagar
ou tivesse fome,
não sei.
Trazia um relógio no pulso,
o que, naquele corpo seco,
parecia um luxo.
Era tão comum,
que passaria despercebido,
se não fosse a aflição
de peixe fora d´água.
DISCIPLINA
Disciplina,
fio de prumo:
duro percurso,
o de repetir,
repetir.
Com a paciência
de relojoeiro;
com ajustes,
suor
e
rigor.
Com certeiro olhar,
alvo e dardo,
na busca constante
da precisão,
do ponto exato.
LIBÉLULA
Uma libélula pousou na estante:
diáfanas asas rendadas
sobre
finíssimas hastes erguidas.
Minúscula nave,
com antenas e olhos.
Sabendo-se observada,
ela também me observa.
Enquanto isso, penso:
Cabe uma alma
em sua frágil arquitetura...
Não me esconde mais
a sua graça:
suspende-se no ar
e segue,
em seu caminho
de vento.
MARIA
I
Maria disse
que quando pôs a mão
na terceira margem do rio,
a terra era lodosa;
e de lá avistou
muitas,
muitas borboletas brancas.
Mais do que isso,
não disse
Levantou-se e tratou
de alimentar as galinhas.
II
Não,
Maria não ousou
adentrar a densa
cortina
de borboletas brancas.
Submergiu no rio
onde apressou-se
em tocar com os pés
o seu fundo lodoso,
as suas pedras de limo.
Enfim,
havia algo
em que apoiar-se.
E
então,
veio à tona,
abocanhando o ar
feito criança parida.
Náufraga,
com o coração pesado,
nadou contra a correnteza
Exausta, ofegante;
As roupas coladas,
em seu pouco corpo.
III
Não fosse parecer distante,
como quem anda
coberta de névoa,
poderia dizer-se
que Maria continua a mesma:
humilde, correta e limpa,
ocupando-se prestimosamente
com a lida da casa.
Nunca mais voltou ao rio.
Olha-o de longe.
Sabe que parte de si
continua lá,
entre as borboletas brancas.
Maria Helena Latini publicou Roteiros de Vida (Achiamè, 1991); Ângela e Antônio (Blocos, 1992); Fio de Prumo (7Letras, 2006); Ângela e Antônio (Edição ampliada, Nitpress, 2011); Duas Mulheres Entardecendo (em diálogos de textos com Wanda Monteiro, Tempo Editora, 2014); Múltiplo Um, (Editora Literacidade, 2015). Participou das antologias "Poesia Sempre" (Biblioteca Nacional, 2006) e "Antologia del poeti nel mondo" (Comunità Italiana, 2006), entre outras. Para teatro: "Afropoemas" (roteiro); "Dois monólogos entrelaçados"; "O que é Poesia?" e "Histórias do Mar" (uma das peças vencedoras do último Edital realizado pela Prefeitura de Niterói).
Imagem: Emil de Jong
Poemas simultaneamente de grande leveza e profundidade. Ótima seleção.
ResponderExcluirFiquei encantada com os seus poemas. Parabéns pela qualidade! Abraços. Djanira.
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