Cinco poemas de Jorge Vicente




1.

o meu corpo é da carne do Alentejo:
a flor sedenta apenas dá fruto
quando o poema anoitece e a
humidade se revela
na sua ascese de séculos.

(2008)






2.

aquele que escreve no limiar do fogo vive apenas na certeza das mãos. são elas que dizem da hierofania maior: a que parte do rosto e descende à altura dos dedos, como se o homem-outro fosse uma extensão do rosto e das pétalas salientes da pele.
.
aquele que diz é apenas quem diz e quem pronuncia as três verdades do som: o om, a sílaba, a palavra. verso algum poderá existir que não aspire ao ventre das mulheres.

(2009)






3.

procuro o lugar da palavra
mais do que o lugar da neve
e, nesse lugar, garras colidem
invocando o poder

o poder absoluto, a abertura das mãos,
das vozes interiores


dentro da floresta, não há casas
nem estrelas subliminares que oscilem
entre o verso e a casa:

a invocação apenas
o sexo do coiote
e dos animais da noite
a trepar por toda a linguagem.

(2014)






4.

nada existe mais glorioso
que derramar sangue em
estado de graça:

assumirmos que somos aquilo
que deus nos fez. seres de
terra. e não de fogo.
com mãos que crescem
e que sentem prazer. com
dedos que esfolam e que
vomitam debaixo de um poema.

existe sempre um grito,
um grito claro e de voz acesa,
que exalta e assume a morte -
a morte que é nossa e dos outros,

e de quem ousar entrar no domínio
dos nossos olhos.

(2010 / 2016)






5.

a cidade voa,
e com ela os pássaros:

o rumor das pequenas aves
que se levantam do ar
até à altura das falésias.

(2019)







Jorge Vicente nasceu em 1974, em Lisboa, e desde cedo se interessou por poesia. Com Mestrado em Ciências Documentais, tem poemas publicados em diversas antologias literárias e revistas, participando, igualmente, nas listas de discussão Encontro de Escritas, Amante das Leituras e CantOrfeu. Faz parte da direcção editorial da revista online Incomunidade. Tem cinco livros publicados, sendo o último cavalo que passa devagar (voltad’mar: 2019).

Imagens: Ian Usher

Comentários

  1. Sempre maravilhoso ler-te, querido Jorge Vicente!! Mil beijos!! 💓💓

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  2. Estes dias no íntimo das paredes, numa cidade fechada junto a Luanda, as horas demoram. É tempo de descoberta. Fui saber do poeta Jorge Vicente. As redes sociais fizeram de nós amigos. No CantOrfeu li alguns dos teus poemas, como também leste dos meus.
    Ler-te, reler-te -- deixo páginas abertas para a elas voltar.
    Fraterno abraço.
    Fernando

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