Sete poemas de Nuno Rau
ARCHIVO MORTO (1978 – 2020)
Encontro (1978)
Nas
varandas do seu dia existe um ser que se ressente,
eu,
que nem de mim posso dizer o exato,
se
passo triste o coração me dói, como sempre,
se
vou insípido a solidão me rói as entranhas,
e
por talvez haver o negro tempo eu olho o nada
e
nada me permito.
São
relíquias as palavras que eu não disse,
e
no entanto seu sentido e conteúdo se perderam
na
vitória que cedi ao meu oposto, o morto
quase
sem nexo nos traços de seu rosto.
Nas
varandas do normal existe um ser que então desaba
no
tino dos seus erros, no limo dos seus dedos
dissecados
pelo tédio. As palavras são duras, eu sei,
mas
suportá-las é leve, e breve o seu momento.
Se
nas varandas deste inferno existe um ser que se reprime,
novos
corpos se vão do outro lado e o sentimento,
que
não define concreto ou abstrato,
resolve-se
por qualquer desabafo. Enquanto
este
ser não se decide, estrelas ensaiam
novos
brilhos.
Juiz de Fora Hotel (1982)
tem feito frio todas
as manhãs
e
a cidade está cheia de estudantes
nas tardes
em que não chove
ficamos pelas praças
caçando
passarinhos da memória
e
invejando as flores nos jardins
solitárias belas
dignamente imóveis
enquanto
nossa busca se define
na
viagem desesperada
na
aventura
de nós mesmos
(notícias daí não chegam)
se o tempo andar obscuro
por favor
venha
lamber meus olhos em todas as horas frias
não diga que não faz mal
tanta
distância
e se o sol brilhar de vez em
quando
telefone
e diga frases sem sentido
deixarei
meus sonhos sobre a mesa
lerei pra você as
principais notícias
dos periódicos locais
o
horóscopo o
boletim meteorológico
a coluna social
apararei meus cabelos e de noite
vou procurar amor nos
quartos de hotel vizinhos
-- extensa noite
tão
plana
é duro ter esta chama
aqui dentro nos
consumindo
quando na varanda deste hotel
a
precisão do tempo
nos massacra
Pavio (1991)
1.
o
dia dispara seus contratempos
CONTRA
meus olhos lentos
-
na marra
meu
lábio seco finalmente toca
o
hálito do seu sorriso ausente
essa
aurora do meu sonho desatado
INDECENTE
2.
seu
olho encarna então o tom sombrio
de
quem sabe conjugar o verbo FRIO
como
ninguém
esse
pavio aceso ao meio-dia
sem
ar/OU
3.
BEM,
você que sabe
traços
de freios/ ERROS/ luzes/ GENTE
nos
aproximam de um mar que estala
CONTRA
meus olhos lentos
novamente
ao
viajar pelo terreno urgente
do
amanhã
gravado
a
frio na pedra escura do presente.
[leia no volume máximo] (1995)
percorro
caminhos lógicos
com
a precisão de um poeta
e
abasteço
os
arsenais da dúvida com delicados lances
descalabros
tomados
de empréstimo ao acaso
retiro as luvas de
pelica
e
toco o mundo
quente
espesso
áspero insano
vertendo
entranhas de uma tarde imprecisa:
compassos
sem métrica
regem
meu torpor danificado
-
UM VILIPÊNDIO A MAIS E FICA TUDO UM BRINCO
retiro
também tudo o que disse
sobre
qualquer paraíso
-
territórios para sempre inacessíveis
Matiz (2006)
não dá pra chamar de plúmbeo este céu, tampouco
argênteo, que um
afunda a sua dor num espectro
engalanado e o outro
aspira a um brilho que
não tem e assim
disfarça o céu que é por tudo cinza,
apenas cinza em sua solidez e lixa
em nossos olhos o que a superfície opaca e rarefeita
aflora de áspero: resíduo, pó, rescaldo
de um incêndio, também chamado, às vezes,
vida.
overlaine (2010)
não
importa quantas linhas um poema
risca
na página
todas são a beira
do
abismo
archivo morto (2020)
todo
poema ergue uma derrota
incomparável,
voz que da memória
dos
deuses não carrega qualquer traço
A
história aqui se deposita, tácito
arquivo
cujo lastro se confunde
em
mil detritos dispersos Que afunde
agora
irreversivelmente o antigo
estoque
destes versos confundidos
com
a vida delirante e sua matéria
brusca
e do último naufrágio a pedra
que
foi geometria então disperse
suas
arestas em pó como quem quer
se
arremessar ao nada, este futuro
que
espreita a todos nas frestas do mundo
Nuno Rau, poeta, arquiteto, professor de
história da arte, tem poemas em diversas revistas literárias, e nas antologias Desvio para o vermelho, do Centro
Cultural São Paulo, Escriptonita, que
co-organizou, e 29 de Abril: o verso da
violência. Publicou em 2017 o livro Mecânica
Aplicada, poemas, finalista do 60º Prêmio Jabuti e do 3º Prêmio Rio de
Literatura. É coeditor da revista mallarmargens.com e professor no Instituto
Estação das Letras, onde desenvolve oficinas de poesia.
* em itálico, sampler do poema Itabira, de Carlos Drummond de Andrade (em Alguma
Poesia, 1930).
Imagens: Ligia de Medeiros
Todos os direitos reservados © Ligia de Medeiros
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