Seis poemas de Ronaldo Cagiano















REGISTRO


Nesse tempo de absoluta dissolução
sou contaminado e salvo pela poesia,
antídoto contra
o veneno dos dias

Já não me importam
a falta de paciência do motorista
os corações duros dos auditores da Receita
a avidez usurária dos bancos
a tempestade de ofensas
o parlamento acanalhado
o roubo nas estatais
a queda do PIB
a crise do euro
os disparos de Kim Jong-un
os disparates de Trump
a poligamia de Jacob Zuma
a saliva farisaica dos evangélicos
a transgênica autoproclamação de Guaidó
os lacaios torquemadas da Lava-jato
e outros coveiros da latinoamericanidade


Meus versos não estarão em repouso
como a indolência que caminha
passo a passo
no ritmo de todas as coisas

Vou de mãos dadas
com o verbo
e com sua pá,

                       lavratura
adestrando
o terreno infértil
                     



                         

PALIMPSESTOS


Sob a pele das palavras
mil mundos me contemplam
com um desafio de esfinge:

palácios
cemitérios
a náusea das guerras
as nódoas do tempo
os compulsórios desertos
a teia da aranha
a teoria da relatividade
a muda órbita dos planetas
o homem sem qualidades
a quadratura do círculo
os contornos do abismo


O vocábulo
se espraia
sobre cada gesto
                   desejo
                   centelha
                   ameaça

e cada espinho que não vejo
                                              e piso
socorre-me do
anonimato

ajuda-me a dissecar
o que ainda não
                          vivi

Nesse tempo
de angústias em pleno cio
de temores soletrando tragédias
de ventos semeando esbulhos
em seu roteiro por
esquizofrênicas pastagens,

o verbo me devolve ao éden













BRONZE

                        Na gramática do tempo
                        consuma-se a linguagem perfeita
                        das estátuas.
                                                 Everado Norões


Na praça com seu nome
passo em frente
ao busto inerte de Getúlio Vargas
e saúdo as aves veteranas
que há décadas depositam em sua cabeça
o engenho das fezes
batizando o metal sem vida.

Olho ao redor
e a vida invertebrada
de vai e vens indiferentes
não se atém
à inutilidade de todas as homenagens

Mergulho na tarde
que, melancólica e sem pressa,
invade e rumina a cidade
em sua imutável e desértica
condição
com seu tempo siderúrgico
endurecendo os pulmões

Atônito entre os labirintos
de provincianos disfarces,
retido na indecisão
de desconhecidos atalhos,
perco o fio dessa meada urbana,
carrego o pesadelo dos dias
e me enfurno na paisagem






CENA


Oblíquo,
um homem atravessa
a rua ao meio-dia
e seu corpo
é um baú de cansaços
onde labirintam mistérios

Enviesado,
não se importa
com metafísicas nem chocolates
e nenhuma tabacaria por perto
secreta o espanto
que o habita

Silêncio
ou vômito
apascentam
essa solidão ambulante













ESTAÇÃO ADVERSA
         

                          Pois não. O passado é um país estrangeiro,
                          mas é esse para sempre o nosso país.
                                           Luís Filipe Castro Mendes

A viagem ao passado
nunca regressa:
na combustão da memória
sinto um cão
chafurdando o íntimo,
adulando um cardume de açoites.

Animal lambendo a ferida,
escória num continente esquivo
onde adubam-se canteiros de melancolia.

As cidades nomeiam
seus mortos
e as efígies de bronze
como tobogãs de insetos,
com seu repertório de excrementos
deixa-os mais vivos
do que nós:

resistem em meio à ausência de bússola
e à fecundação do precário
nesses tempos de ilusões no cio
e colheita de fósseis do nada.

Martelo feroz da existência
é essa música do tempo
tutelando meus dissabores
notas culminantes feito lâminas:

é o fado
ou o fardo da vizinha com besouro na garganta
sibilando salmos em desvario,
acidente
na rota de minhas insônias
quando viajo em galáxias de sangue.

Há um mundo dentro das palavras
(máquina soturna)
que tento desbravar:

esse promontório
que é sedução
                       ou abismo.





NO PÈRE LACHAISE


Enquanto visito o túmulo
de Sadegh Hedayat,
escritor persa que se suicidou em 1951,
abrindo o gás no nº 37 da Rue Championet,
meus olhos passeiam inquietos;
os sentidos, fugidia embarcação,
procuram no oceano de jazigos
e sua vegetação de ausências
um último sentido para a vida
e afundo-me no inominado
nessa coleção de oráculos do Nada
aqui, onde a morte nunca envelhece.
.
Vizinho de Proust,
o autor de “Coruja cega”
divide na tarde parisiense,
despovoada e sombria,
um silêncio tão pesado
quanto o maciço de Damavand.

Vou em busca de um tempo perdido
em meio dessa colônia inerte
onde cresce a linguagem das sombras
e penso em Atma, o cão de Schopenhauer,
e no quanto foi mais feliz
que o resto da Humanidade.


                                                                            Paris, novembro/2018










Ronaldo Cagiani, Mineiro de Cataguases, é formado em Direito. Tendo vivido em Brasília e São Paulo, radicou-se em Portugal. Autor, dentre outros de "Dezembro indigesto" (Contos, Prêmio Brasília de Literatura 2001), "O sol nas feridas" (Poesia, Ed. Dobra, SP, Finalista do Prêmio Portugal Telecom 2012), "Eles não moram mais aqui" (Poesia, Ed. Patuá, SP, Prêmio Jabuti 2016) e "O mundo sem explicação" (Ed. Coisas de Ler, Lisboa, 2019).










Imagens: Kenzo Okada

Comentários