Cinco poemas de Ana Maria Agra
Quero a queda patética
aquela a que o riso se destina
quero a queda
o beco sórdido
rasgar a carne
escorra muito sangue
meu sangue não seja heroico
sou um ser
que desiste da verticalidade
patético, as vísceras à mostra
o sangue pisado
rasgado o véu,
quero me tatuar de humildade.
quero me tatuar de humildade.
Balada para Narayama
Meus dentes se fincam na raiz.
renegam o chão
estou velha, velhinha
agora sou somente um fardo
me dobro sobre meus joelhos
meus olhos estão secos
herdei os olhos miúdos
e o caráter forte de meu pai
de minha mãe, herdei a ingenuidade
da vida, herdei um corpo seco
um corpo exigente
que só sabe o prazer
carregando este corpo
vou subindo passo a passo as montanhas
vou me curvando sozinha
domesticando os espinhos
rasgando a pele seca dos pés
uma velhinha - apoiada em sua bengala
carregando um fardo
o corpo que não quer morrer.
Do corpo
O corpo é poro e pele
e réstias de mistério
sendo superfície
abriga em tecido
as facas inflamadas
um gume cego
a outra face amolada
o corpo colonizado
pelos martírios da pele branca
as rachaduras dos pés
abrindo fendas na terra
sob o sol do meio-dia
o rosto rochoso
pende sobre a terra
em gotas de sangue e suor
aqui, nesta tenda improvisada
nenhum homem sabe
de outros homens
que talharam o terreno vazio
o solo- um rosto anônimo
a superfície áspera
o corpo cortado para a veste de algodão
o chapéu – somente a proteção necessária
escrevo o poema
o molde do poema
o corte do poema
a feitura do poema
qualquer homem pode rasgar o poema
quando o talhe não lhe cair bem
o corpo permanece
o corpo nu
o corpo sem desejo
o corpo retalhado
posse derradeira do último palmo de terra
a sobra do corpo são réstias
indecifráveis aos que passam indiferentes
Delírio
não se retorna nunca à primeira urdidura
todos os regressos são inúteis
as vísceras do rio
prolongando as dores longas
minha sorte já decai
procuro por tua alma e choro
o ventre carregado de palavras
os poemas urdindo vida e morte
onde a dor doía?
aqui estou e te vejo
afago com a mão esquerda tua loucura
a roda gigante alheia à noite estrelada girava
minhas ancas fremiam
aquilo era a felicidade?
eu dizia: – sintam o aroma dos lírios
o destino delirante vem para coroar esse milagre
e aqui estou lambendo as mágoas
soterradas neste palmo de terra
jamais recusei o ombro que me deste
o sentido e o sem sentido
nosso voo rasteja o chão
choramos de compaixão.
Penitência
o chão em que piso
sem terra à vista
sem paço
nele não dou um passo
sem ponto de partida
sem ponto de chegada
nada me surpreende
nem mesmo os deuses incriados
mendiga de cruéis descompassos
criança sem balbucio ou pranto
rubra perdida em trevas
oh! poeta, inventa tua poesia
para que eu possa habitar
o bruto coração da vida.
Ana Maria Agra nasceu em Campina Grande (PB). Formou-se em Letras pela UFPB, com mestrado em Teoria Literária e doutorado em Literatura Brasileira pela UnB. Atualmente é professora do Departamento de Artes Cênicas da UnB. É autora de Poemas em dor maior (Thesaurus, 1992), A Encenação do Real: A Sublimação em A paixão segundo G.H. e Água Viva, de Clarice Lispector (Ed. UnB, 2016), de Romã Madura e Inventário dos Ventos, ambos pela 7Letras. Tem no prelo o livro Quarenta Janelas para a Lucidez, pela Patuá.
Imagem: Georges Rouault [1871-1958]. Paris Dame de province (reine de cirque).
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