Três poemas de Anna Clara de Vitto
the crew would have
kept silent
não, a tripulação não
teria dito nada,
uma palavra sequer sobre carma coletivo
certifiquem-se de ler o cartão com instruções
sobre as saídas de emergência
nada: luzes apagadas de súbito
entretenimento a bordo
e o filme mental malfeito
certifiquem-se de afivelar os cintos de segurança
enquanto o sinal luminoso estiver aceso
nada: nem máscaras de oxigênio
nem bagageiros abruptamente abertos
uma palavra sequer sobre carma coletivo
certifiquem-se de ler o cartão com instruções
sobre as saídas de emergência
nada: luzes apagadas de súbito
entretenimento a bordo
e o filme mental malfeito
certifiquem-se de afivelar os cintos de segurança
enquanto o sinal luminoso estiver aceso
nada: nem máscaras de oxigênio
nem bagageiros abruptamente abertos
atenção: este poema é
uma caixa-preta
a única pista sobre o trágico mergulho
de um malabar metálico
a única pista sobre o trágico mergulho
de um malabar metálico
nada: bye bye, Miss
American Pie
engolida com a comida sem gosto
e o final do livro por ler
engolida com a comida sem gosto
e o final do livro por ler
é doce morrer no ar?
prólogo para a mulher
sem mãos
a poeta tem pés tão
diminutos
quanto um epitáfio
e
mãos pequenas
de quebrar louças
quanto um epitáfio
e
mãos pequenas
de quebrar louças
a mulher sem mãos
espreita as fendas das horas
espera
a mínima distração
espreita as fendas das horas
espera
a mínima distração
a poeta quer um beijo do
seu homem:
não pode ter um homem
quer um beijo da sua mulher:
não pode ter uma mulher
não pode ter um homem
quer um beijo da sua mulher:
não pode ter uma mulher
a mulher sem mãos
esfria a espinha dorsal da poeta
com os lábios
esfria a espinha dorsal da poeta
com os lábios
as louças grandes
demais
escorregam das mãos da poeta
e
em algum lugar do planeta
lascas de porcelana
significam sorte
escorregam das mãos da poeta
e
em algum lugar do planeta
lascas de porcelana
significam sorte
a poeta maldiz o dia
em que se fez corpo
em que se fez corpo
a mulher sem mãos
parte o corpo da poeta
com o pensamento
parte o corpo da poeta
com o pensamento
Codicilo
pelo
presente instrumento
feito e assinado
de meu próprio punho rasgado
neste estado terminal de coisas
em uma rua que
se fosse minha
mandaria ocupar
eu
dona de um nome bonito
e mais coisa nenhuma de útil
maior capaz em perfeito juízo e entendimento
livre de coação ou induzimento
exaro minha última vontade
o último suspiro por escrito
e decreto
a desapropriação:
da única concha inteira
achada na arrebentação
numa tarde de passos cúmplices
das botas e óculos gastos
e de todos os livros lidos
que custaram um casamento
dou este por feito e concluído
enterrem-me com as bandeiras
feito e assinado
de meu próprio punho rasgado
neste estado terminal de coisas
em uma rua que
se fosse minha
mandaria ocupar
eu
dona de um nome bonito
e mais coisa nenhuma de útil
maior capaz em perfeito juízo e entendimento
livre de coação ou induzimento
exaro minha última vontade
o último suspiro por escrito
e decreto
a desapropriação:
da única concha inteira
achada na arrebentação
numa tarde de passos cúmplices
das botas e óculos gastos
e de todos os livros lidos
que custaram um casamento
dou este por feito e concluído
enterrem-me com as bandeiras
Anna Clara de Vitto (Santos /SP, 1986), é poeta e
autora de Água indócil (Urutau, 2019). Desde 2017, integra a coordenação do
Clube da Escrita para Mulheres, fundado pela escritora, cordelista e poeta
Jarid Arraes. Pela Casa das Rosas, em São Paulo, frequentou o Curso Livre de
Preparação do Escritor – CLIPE (2018) e o curso Poesia Expandida (2019). Possui
poemas publicados nas revistas Ruído Manifesto, Germina Literatura, Fazia
Poesia, Literatura e Fechadura, Algo deu Errado e Revista FNX. Além das
publicações esparsas, participa de saraus, performances poéticas, leituras e
mesas de debate. Em novembro de 2019, publicou sua primeira plaquete artesanal,
intitulada MEADA.
Imagens: Theo van Doesburg
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