Sete poemas de Daniella Guimarães de Araújo
Preciso dos barcos
preciso dos barcos
dos barcos imprecisos aparentemente fracos
que balançam mais ao vento
e seguem sob constelações
mesmo com todo pouco que há dentro: água, pão, faca, duas maçãs, sonhos
preciso dos barcos
que tomam rumo cortando o escuro
o medo
esses tempos tão brutos
a mão do velho de Hemingway
na minha.
Campo das mais simples harmonias
Era um reino sem os prepotentes
os galantes da forma nem tinham vez
sem o clã de hienas que se vê nos altiplanos
sem feitores “inocentes“ dos fakes
Era um reino de abastança: pão, riacho, flor de
sempre-viva e sanhaço
com telhados de vidro e um pouco mais de ouvido
todos os seres eram música
guarde essa frase: todos os seres são música
o mais simples dos dias era estrelado de estreias
festa:
deve existir um deus para quem não é preciso pedir nada .
Breviário de espasmos
e então souberam que mulheres e homens haviam morrido antes da hora
e meninos e meninas
muito muito antes
e viram
a multidão de cabeça inclinada seguindo
sem desviar os olhos do que fosse seu
e viram menos vilarejos e gramados, besouros e beijos dobrados
menos mesas postas sobre toalhas xadrezes
e viram
a cara crispada dos egos e apegos
a boca fagocitada da política
e viram
muitas drogarias e farmácias
farmácias e drogarias
a velocidade mórbida dos ifoods pelas ruas
o pai e a mãe mais cansados que antes
viram
mais cansados que antes
mais cansados
e viram plástico sobre palitos, colheres, comidas e bebidas
até sobre as areias
até envolvendo as ostras
as montanhas feitas de restos e restos e podridão
e as flores de plástico
feias e frias que só elas
viram
e viram a solidão engenhosa do tempo
cavando
fundo fundo
e não encontraram nada que exibisse alegria.
Calendário
no modo contínuo chega-se a setembro
paga-se as contas, conhece-se os novos usurpadores do país, repara-se o cheio das luas,
afaga-se rapidamente o cão, compra-se maçãs e alhos
alguém sempre dirá que o ano passou mais veloz do que devia
foices do tempo - eu diria -
com tal voracidade não está a salvo a voz da filha, a saudade de um pai, a encadernação
de um clássico recebido, as madeiras-de-lei da casa,
nem mesmo a tatuagem no peito
o amor - esse substantivo que habita substâncias -
escreverá faltas e faltas
em versos livres chegaremos ao ponto onde da exaustão saímos
hora sobre hora,
provisórios.
Por Rimbaud
no dia que Rimbaud morreu
os deuses muito consternados
disseram à eternidade:
oh mundo povoado por mulheres e homens que escrevem suas letras e carregam suas dores
sejam teus livros a mais alta torre
no dia que Rimbaud morreu o outono chorou sobre Marselha
a sua canção de juventude ociosa
“que venha o dia que os corações se amem”
que venha que venha
a estadia das rosas.
Os seres cerrados
Tenho simpatia por
mulheres e homens falhos
esses
que fazem torcer o nariz dos perfeitos
esses que ganham corpo no decorrer da vida:
corpo de faltas
nada grandioso para um portfólio, um currículo
uma conversa de ganhos entre amigos no bar
tenho simpatia por falhas
tal qual tenho simpatia por folha do cerrado
( as secas )
os sonhos em queda
em queda
em queda
as hastes retorcidas entre silêncios e pios - vida de pouco adorno
uma ou outra flor despontada pra se contar alegriazinhas.
quando entardece o tempo
as horas mortas vigoram
vazias do ofício
as saudades não são miúdas
amiúde
são longas e longe
o diabo na espreita
e o deus
sem nenhum cio.
Salut
em dias de desassossego, é preciso ver as rosas de perto
mais perto
rosas esguias ou mesmo as debruçadas sobre muros,
as vulneráveis rosas quase despedaçadas pelos ventos
as quase invisíveis
rosas.
em dias de desassossego é preciso ir até a primitiva criação , os primeiros maravilhamentos
antes, bem antes das artesanias
é preciso
esquecer que em dezembro as febres do consumo andam à solta
e as quinquilharias são muitas
viver parece um grande camelódromo
onde tudo é demasia e nada sacia.
em dias de desassossego é preciso ir até as primeiras
perfeições
que se repetem
século sobre século
é preciso ver:
pedra, pétala, pássaro
ou
rosas, rosas, rosas.
Daniella Guimarães de Araújo (Leopoldina, MG - 1963) vive em Sete Lagoas-MG. Poeta, autora dos livros Conto de um amor intermitente, (Editora Rona, 2017) e (in)visibilidades (Desconcertos Editora , 2019). Funcionária pública, sanitarista, trabalha na área da saúde coletiva onde tem desenvolvido o projeto Saúde e Literatura e Cartas para Guimarães Rosa.
Imagens: Howard J
Você arrasa Dani...Certamente é um dom...A facilidade como traduz sentimentos....Você é demais...mts beijos
ResponderExcluir👏🏾👏🏾👏🏾Para o alto e avante,Dani!!!!
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