Seis poemas de Tadeu Sarmento















Carta de intenções

A memória do amor –  
É longa a lista de suas
Doenças transmissíveis:
“Você ainda está em mim
Como cicatrizes de vacina
Disfarçadas de varíola.
Mas eu contrairia tudo novamente.
Menos as dívidas de banco".













Distância

Abriu, a marteladas, uma
Janela extra na casa,
Para observar a paisagem imensa.
Que depois de conhecer esta paisagem
Seus relógios viraram pássaros.
Que esta paisagem aos poucos se tornava
Irreversível, como a morte, tocando flauta.
Que as cadeiras da casa ardiam sob a sombra
Do fogo que crepitava longe. Que dentro do espelho
Um coração atado a um cão ferido, molhado de sangue.
Até que finalmente decidisse tocar a paisagem com os pés
E chegasse até ela, soprado pelo vento, em um paraquedas colorido.











Deck lunar

Achei meu coração no lixo hospitalar e te
Dei. Já teus olhos tive de roubar na joalheria,
Mas caíram de minhas mãos durante a fuga.
Pois tenho polegares tortos que herdei de
Meu pai (toureador picareta e polícia). Então
Você disse que sonhou comigo e eu pedi que
Não reparasse, pois nos sonhos temos sotaques
Que não os nossos. Você disse que contei
Do sobrevivente de Auschwitz que acertou o grande
Prêmio com sua sequência de números tatuada no pulso.
"Deus às vezes faz piadas politicamente incorretas",
Respondi. "Mas Ele pode", você devolveu, com
Meu coração nas mãos, cheio de moscas em cima.











Burna

Em Burna as mulheres são azuis.
Começaram pintando os lábios de azul.
Com tintas de uma rara água-viva que
Vive no Bósforo. Têm cabelos negros
Como noites em que se amaldiçoa em espanhol.
Usam colares de pérolas cuspidas por relâmpagos.
Conta-se que apagam fogueiras com longos e retos
Jatos de urina. Que seus sorrisos são limites entre o
Deserto e o mar. Que bebem como camelos que
Comeram sal e são perfumadas como cartas de amor
De soldados que morreram no front. Que tatuaram sóis
Nas costas e estrelas no céu da boca.
Burna fica em Delaware.












Chorume

Sonhou com o pesadelo de crianças caindo
De uma roda-gigante quebrada. Com um
Unicórnio que se apaixona por um cavalo de
Plástico-bolha que enfartou em um carrossel.
Depois, Kafka entra em cena como bilheteiro
Do trem-fantasma, dizendo que poetas não precisam
Pagar entrada, pois o amor pela literatura é sempre sincero,
Embora poetas mintam em todo o resto.
"Mas restos são restos", Kafka completou.












Eletrocardiograma

Não tenho nada no coração
Só uns poemas de amor
Pregados em ímãs de geladeira.







Tadeu Sarmento é pernambucano e reside em Belo Horizonte. Em 2014, foi premiado no "II Prêmio Pernambuco de Literatura" com o romance Associação Robert Walser para sósias anônimos (CEPE, 2015). Tem também publicados: E se Deus for Um de Nós? (Confraria do Vento, 2016 ) e O Cometa é um Sol que não Deu Certo (SM Edições), vencedor do "13° Prêmio Barco a Vapor 2017". Estes poemas são de Um Carro Capota na Lua (Tercetto, 2018), vencedor do “Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura 2016”.












Imagens: Theo van Doesburg 


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