Quatro poemas de Márcio Leitão
Poemas dedicados a memória de meu pai
(Nilton Leitão)
MEU PAI I
Lembro
corte na voz
navalha prosódica na história de
ninar
encantador de sonos e carências
acolhe meus olhos nas sombras
encoraja meu mergulho emprestado
minha conta líquida e ainda sem
números
entorna medo no couro da vida
mas sempre aprisiona minhas quedas
com correntes e cadeados implacáveis.
Relembro
risos fáceis e gêmeos entre nós
cúmplice endurecido
raio amoroso de pouco trovão
coça de mão apertada
mas leve
limites sem corrimão
mas de horizontes e asas.
Descubro
proximidades feitas de também
corpos aproximando cores
opiniões sempre azuis
ternuras grisalhas e distantes
carinho confortável e sem sobras
escadas no alvo e nas vozes.
Preciso
poucos inteiros
quandos inquietos
clarões
toques robustos com ou sem mãos
sem pensar
sem finalizar
sem filho
sem pai
só eu e você.
MEU
PAI II
Ele já nasceu muitas vezes em mim
sempre foi grisalho na voz
mas hoje é mais falta do que quando
eu era jovem
é mais luz do que quando
eu era ímpeto e arremedo.
Hoje a distância
me engole de saudade
fotografa instantaneamente
cada suspiro, cada mania
cada orgulho, cada fragilidade
muro alto que me abrigava
hoje abriga o dorso dos meus olhos
e de minhas memórias.
Hoje ele é minha necessidade
meu espelho, minha ampulheta
já que não somos
nada mais que areia fina
incessante
e com destino certo
Sinto cair junto com ele
com meus filhos
cair sem retorno
cair porque só nos resta a queda.
Queria mais silêncios e abraços
enquanto caímos tão mais próximos
apesar dos quilômetros
sinto o cheiro doce do seu sono
na cadeira e na televisão
Queria só estar perto de fato
além do laço inquebrável
e sonoro que nos acende
juntos
tão perto
quanto neste poema
nessa memória quieta
que me acalenta
no canto da madrugada
enquanto ele dorme.
ILHAS e PARTIDAS
Enquanto os gestos
engolem e travam o tempo
em mim
os restos de pão
continuam a desabar
do prato à pia
do ralo ao vão dos mundos
e dos canos
redes que interligam
toda a indiferença
Enquanto a noite
é única e individual
em mim
o coro dos carros
roem o pó e o piche
intermitentemente
ninguém mais enxerga
ou se cobre na mesma noite
que eu
só o meu casco é que interessa
o meu sorriso
só é riso e dor dentro de mim
nem o espelho cuida da minha
pele ou da minha tristeza
só há cada ilha que somos
invisíveis pro mar
pros navios
pros marujos
pras outras ilhas
e tudo que se passa dentro
do corpo e da carne ilhados
é só solidão e, ás vezes,
doçura e lembrança.
Até, meu pai!
Ainda não sei o que sou agora
Renovado a fórceps
Amputado de uma de minhas raízes
O equilíbrio ainda é possibilidade
A ser perseguida.
A saudade ainda é pó
Doloroso que cimenta os dias
É corte
É questão
É culpa
Mas sei que a lua é imensa
E tem espaço pra minha noite
Tem colorido suficiente
No amor que me foi dado
E que me sustentou até ontem
Só quero caber nesse ontem
Saber pintar as ondas cerebrais
Mnemônicas
Pra trazer as pequenas felicidades
E a cabeça grisalha
De novo pro meu colo
Pra sempre
Até o sono
Até de novo
Até o nada.
Imagens: Judith Lauand
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