Cinco poemas de Rosana Piccolo



Ira

possível rosto de um tigre
nesse girassol do fogo, quando
a noite é carroça de demônios
e uma horda de rugidos
povoa-me as veias


queimo as mãos ao tocá-la
(essa aparição das chamas)
fera
ou ânfora de cólera
onde perco meus óculos





Rua de comércio

oblíqua
talvez acalcada 
por sapatos baixos


(quando manequins entopem vitrines 
às quintas e às sextas e todos os dias)


ou a tenha colorido 
o riso do exu
pendurado nos cabides


a nos empurrar o mundo
pela garganta





Metropolitano

rajadas egípcias, tantos e tantas
na escada rolante
(mais do que o número dos escritórios
cortando cérebros em bifes) 


gafanhotos quase
ansiosos, aglomerados, crepitantes, embaralhados
na plataforma pisada


o trem avança com olhos em brasa 
conduz ao inferno a todo minuto




III *

meias do medo


finíssimas


as árvores _________ o seu espelho


 língua tivesse      verde seria


 envenenada    ponta de flecha


treva


medo do beco


medo do bêbado


medo do muro


medo de tudo


gira


como um vestido de baile


* Trecho do poema O Pão.






Neon

depois do céu de Berlim
em tantos outros flanam os anjos

amam a nuvem frígida
e crianças
e bibliotecas
e detetives com olhos de vidro

bairro anoitecido
onde o fósforo ao ouvido das mulheres
balbucia ____ a esquina mortiça
(porque também a amam os anjos)

nela é possível ver algum ____ ágil
equilibrando

a bandeja de um bar







Rosana Piccolo, publicitária e poeta paulistana, atualmente vive em Curitiba. Autora dos livros Ruelas profanas (Nankin, 1999), Meio-fio (Iluminuras, 2003), Sopro de vitrines (Alameda, 2010), Refrão da fuligem (Patuá, 2013), Bocas de lobo (Patuá, 2015), além da plaquete O pão (Lumme, 2017) e Alla prima (Patuá, 2019). Organizadora da antologia MedioCridade (Laranja Original), ao lado do poeta Rubens Jardim.
Imagem: amandalemal

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