Cinco poemas de Mariana Ianelli














CORTEJO

Um império caiu com a sua prata,
O seu espírito desacelerado por detrás da soberba.
Os domínios caíram e as altas catedrais absolutas,
Seus mosaicos seculares,
Os heróis nomeados nos duelos,
Legendas da vitalidade.
O mestre ruiu, finalmente.
Fechadas as casas, os adjetivos.
Calamos um privilégio e nos sentimos bêbados,
Mas não nos levantaremos amanhã
Contra a morte de nada.
As crianças se oferecem ao feroz da nova geração,
Descansam nos ferros retorcidos
E nunca temem a nossa vergonha infeliz.
Do zero subimos paredes,
Reconstituímos os átomos impassíveis,
Velhos fatos desordenados,
O que a lei nos excluiu.
Calamos o insolúvel e nos sentimos menos,
Mas o poder do abandono reeduca as nossas crianças.














TEMPO DE PERDER

Algo nos falta
E já não sabemos o quê.

Vestimo-nos
Com a nossa melhor camisa,
Calçamos sapatos novos,
Ainda podemos correr
Como se tivéssemos
Vinte anos a menos.

Mas estamos doentes.

Pensamos sem amor,
Sentimos sem amor,
E toda a intrepidez do mar
É apenas o nosso rugir de dentes.

As pernas estão nuas,
Os braços estão nus,
Acabou-se o mistério.

À mesa do jantar,
Não há mais comunhão.
Vamos juntos ao teatro
E talvez não retornemos

Na penumbra do acaso,
Os massacres acontecem.
O tempo arde, o tempo urge:
Somos os sobreviventes.














RETORNO

E quando apenas um deles
Restar
De quantos voltaram
Dos campos de trabalho,
Será o último alambrado
Retesado na memória –

Como se de novo pairasse
No mundo
A solidão do primeiro homem.















MEMORANDO

Não há grandes notícias.

Uma torre desapareceu,
O inverno expandiu-se
E a esperança ainda rói
O fundo de uma caixa
Procurando saída.

Com esculpido esmero
Vai se acabando uma família.

Um gesto qualquer se repete
No ensaio de ser abolido,
Remediar, abafar, corrigir,
Nada lembra o que antes foi só
Generosidade de coisa viva.

Não convém
O alvoroço dos pássaros,
A revanche da galhardia.
É inútil desafiar o pó
E, contudo, desafia-se.














OS IMPUROS

" Parece-me que há algo como lepra na casa. “
(Levítico, 14:35)

A peste chegando
E não soubemos ver.

Fomos padecendo naturalmente,
Uma figueira de pouca sombra,
O tronco pesado de segundas-feiras.

Por sete dias a casa vedada,
Tentamos a paciência:
Não disparatar,
Não bulir com o silêncio,
Reconsiderar as coisas pequenas.

Mas a peste vencendo,
Comendo as paredes,
Uma vergonha
Que não imaginávamos
Tão prestimosa, tão perfeita,
Chancelada pelo tempo.

Arrasamos a casa.
O chão nós arrancamos fora,
O grão de onde manava a doença.

Não sentimos pena.
Matar, nós matamos
Num sopro de gentileza.











Mariana Ianelli nasceu em São Paulo. É poeta, ensaísta, cronista e crítica literária. Seu primeiro livro de poemas, “Trajetória de antes”, foi publicado em 1999. Foi quatro vezes finalista do Prêmio Jabuti, na categoria poesia, com os livros “Fazer silêncio” (2005), “Almádena” (2007), “O Amor e depois” (2013) e “Tempo de voltar” (2016). Em 2008, recebeu o prêmio Fundação Bunge (antigo Moinho Santista) - Literatura, na categoria Juventude. Em 2011, obteve menção honrosa no Prêmio Casa de las Américas, em Cuba, pelo livro “Treva alvorada”, na categoria Literatura Brasileira. Publica crônicas, quinzenalmente, aos sábados, na revista digital Rubem. Como ensaísta, publicou “Alberto Pucheu por Mariana Ianelli”, da coleção Ciranda da Poesia, pela editora UERJ. Publicou “Breves anotações sobre um tigre”, seu primeiro livro de crônicas em 2013, pela Editora Ardotempo, que também publicou seus oitavo e nono livros de poesia, “Tempo de voltar” (2016) e “Canções meninas” (2019). Tem poemas publicados em Portugal, Espanha, França, Hungria, Cuba e Argentina. Estreou na literatura infantil em 2018 com o livro “Bichos da noite”, ilustrado por Odilon Moraes. O livro foi incluído na lista dos trinta melhores livros infantis lançados no ano de 2018. Em 2018, participou do circuito de autores do projeto Arte da Palavra, pelo Sesc, ao lado do escritor pernambucano Cícero Belmar. Desde agosto de 2018, é curadora da página "Poesia Brasileira" no jornal Rascunho, publicado em Curitiba. Tem quase duas dezenas de livros de poesia, crônicas, ensaios e infantis publicados. Os poemas desta página são de “Manuscrito do fogo” (Editora Ardotempo, 2019).





Imagens: Arcangelo Ianelli







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