Cinco poemas de José Antônio Cavalcanti



Exercício aéreo


Sete 
serpentes de celofane flutuam
sob a pele azul-pólvora
do céu em queda.


As linhas
que as sustentam
são minhas veias aéreas.


Até que o destino
abra o zíper de intempéries
e despeje,
sete pipas 
voarão alto na tarde.






Açúcar


Às vezes 
me dá um branco;
algo na memória
se apaga.

Grão ou gota
de doçura extrema
alarga-se
na ponta da língua.

Aproveito então
a fuga milagrosa
do acre 
e o desgaste de áspera gastronomia 
para abrir o lacre
do mel da poesia.







Anoitecência


A boca da noite 
engole
o fogo do dia.


Todo gole
de luz
que escapa
é poesia.






Anarquipélago


Submersas e móveis
ilhas
isoladas
sob um sol submarino 
ensinam naufrágios a bússolas
no solstício de dezembro.


Não há caravelas
nem argonautas,
apenas náufragos
em águas estrangeiras.


Loucas e líquidas latitudes,
mil mares inavegáveis.


Cinco ilhas desconhecidas: 
entre elas, no fundo indizível,
vive,
no mar de fuligem, Le Bateau Ivre.


Guarda (contrabando na carga)
palavras como âncoras corroídas,
ossos e um mundo fora de prumo.


O velame de velcro avisa
a vagabundos visionários e intempestivos
que só se navega de verdade
vertical/mente.


Ilhas em fuga
afundam a teoria dos conjuntos
a falácia de mapas,
o sentido da história,
os gozos memoráveis.


Tantos portos,
tantas palavras
e nenhum destino.


E se todo caminho for (clan)destino?







Anjos

          “O último anjo derramou seu cálice no ar.”
                                           – Murilo Mendes
Não o da melancolia de Dürer,
olhos exilados de signos,
exausto de garimpar as sílabas
de um nome nunca revelado.


Não os prosaicos e suspensos
anjos de Chagall
descascando pecados
sob o chão da cozinha.


Muito menos o de Benjamin,
de costas para o futuro
num voo pesado e obscuro.


Sequer aquele caído nas sombras
de Drummond
em torta escrita de tropeços.


Nem a criatura terrível de Rilke
de asas lavadas em ira e arrogância,
escriba e vigia de nossa sangria.


Um anjo também me assombra
só para sangrar-me.
Anjo apóstata e herege,
corrói com suas asas de inseto
caminhos e projetos.
Examina com tédio e desânimo
os índices de pânico e de esperança
depois de devastar as reservas.
Intrigante e pérfido,
sussurra-me conselhos obscenos,
pragas,
impropérios.


Mostra-me o seio esquerdo
e me olha envenenado,
mensageiro sem mensagens,
desertor de Deus e do homem.


Em sua última passagem, mãos entrelaçadas
e seu corpo macio colado ao meu,
a dupla inscrição de pecados
nas placas e paredes da cidade.







José Antônio Cavalcanti. Sambista carioca, poeta, ficcionista, ensaísta e professor. Autor de Anarquipélago (poemas), Ibis Libris, 2013; Palavra desmedida: a prosa ficcional de Hilda Hilst, Annablume, 2014 (tese de doutorado em Ciência da Literatura - UFRJ); Fora de forma & outros foras (contos), Ibis Libris, 2015; Movimento Suspeito (poemas), Urutau, 2016, e Linha de instabilidade, Urutau, 2018. Participou das antologias 29 de abril: o verso da violência, Patuá, 2015, e Casa do desejo, Patuá, 2018. Textos em Mallarmargens - Revista de Poesia e Arte Contemporânea, Revista Zunái, Germina, Revista Eutomia, Caderno Ideias do Jornal do Brasil, Periódico de Poesía (MX), Cronópios etc.


Imagem: Anja Mexicola

Comentários