Cinco poemas de Edelson Nagues














Estio

Quando a palavra
gera na boca
[sobre o solo
rachado da língua]
o cascalho do silêncio,
as engrenagens
de um tempo de estio
estrangulam
metáforas e risos
entredentes.














Urbe

A cidade, espessa
[sístole e diástole]:
entropia urgente.

Motores e corpos
latejam desejos
no fumo dos becos.

Há ranger de ferros,
de ossos e de dentes
na junção dos díspares.

Um olhar caótico
depara o concreto
que empareda o medo.

As palavras-pássaros
jamais se capturam
nas gaiolas-mentes.

E bocas vorazes
engolem silêncios
e pastéis de vento.

Frêmitos no sexo:
um vômito cíclico
na pétala aberta.

Átimos de dor
reprisam-se em seus
eternos fragmentos.

E nenhuma placa
aplaca o desnorte
da turba que sofre.

A cidade-esfinge:
máquina que mói
putas e poetas.












Caudal

Singro o rio multifário
das verdades ocultas,
das hordas dissimuladas
desses homens absurdos.
Sinto-me também absurdo,
nestas águas de clausura.
E tanto — sutil paradoxo —,
que me liquefaço, inerme,
pela correnteza atroz.
Para que nasça, de mim,
um ser que resuma tantos,
como parte da carência,
como projeção em outros
tão iguais e tão diferentes
entre si, entre todos. Entre
fios de redes ancestrais,
que submetem ao destempo.
Este rio caudal, que anseia
um mar sereno [horizonte
obliterado]: deságue
de seus veios transversais,
repletos de anomalias
em corpos boiando no limbo,
com a alma dilacerada 
pela negação e o desdém
de seres também anômalos.
Estranho que sou, de mim.
Eles [o espelho que evito]
me cindem e me englobam.
Eles me são. Enquanto sangro,
nas vagas da incompletude.
Às vezes, em versos vãos;
noutras, em orgasmos tristes
[gestos vagos, pela ausência
de um olhar que os ilumine].

Esperança per se:
seres em si e nos outros.
Mãos que, assim, delineiem
um mar ainda possível.












Tempus edax rerum

[Para Carlos Drummond de Andrade,
in memoriam]

Tempo, este, que tudo morde
— um cão faminto e sem dono.
Caninos a moer mentes:
homens-zumbis, se não mortos.

Tempo que nos amordaça
na profusão das palavras.
As vidas, em cristal líquido,
nas telas se liquefazem.

Tempo de rancor e medo
— dois sentimentos num só.
O outro compartilha a rede,
mas nunca almoça conosco.

Tempo de fé dissoluta.
Falsos profetas — o trízimo.
Universal confraria
de almas expostas à venda.

Tempo que, assim, nos divide:
corações, cérebros, punhos
pulsam, confusos, nas ruas.
[Um símbolo que nos salve!]

Tempo de mãos pedregosas.
Nenhuma carrega o mundo.
Antes, ferem o diverso,
ainda que também humano.

Tempo com águas passadas
a volver, por sob a ponte,
lançando em cárceres fétidos
toda sorte de esperança.

Da rosa, o povo não sabe.
[A dita que rompeu o asfalto.]
Nem memória, nem resíduo.
Ó Carlos, bem que avisaste!












Canto para um menestrel

[Para Elomar Figueira de Mello]

É deveras vasto esse sertão
que se revela em teus palimpsestos,
com esse povo que tu cantas,
no limiar do signo da terra
— pó e barro, visagem ao sol:
serpente a engolir o próprio rabo.

Teu canto demiurgo: ave de prata
moldada na intenção do voo,
em um movimento intrínseco,
por entre ruínas e castelos
que a litania aviva na memória,
com o fogo ancestral da tua fé.

Neste instante, nesta agonia,
busco, assim, o Brasil profundo,
que se alheou de si e de nós.
Na ferrugem — pátina do chão —,
sob os cascos duros dos carneiros,
que não sabem dos homens perdidos.

Um país e seu povo imanente
a emergirem das águas, em teus rios,
forjados na quimera atemporal
[num tempo, então, eclesiástico,
marcado no chapéu, em tua fronte],
raiz desse teu arcadismo cristão.

Enquanto esse cantar me trespassa,
alhures, a cidade se enreda
na algaravia de palavras ocas,
em ladainhas, rituais e mitos,
nos miasmas, entre ruas e becos,
que seduzem os homens perdidos.

Menestrel de fímbrias e de teias,
quisera contigo fazer um pacto,
com o sangue arrancado a golpes
de espinho do mandacaru;
segredar temores, ao abrigo da arte,
em esperança: palavra-pão.

Em galope, num arranjo e cordas,
atravessar, veloz, este deserto.
E recriar outro país [o mesmo],
na pulsação do nosso povo de antes,
redivido em notas e compassos
que irmanassem os homens perdidos.









Edelson Nagues é natural de Rondonópolis/MT e radicado em Brasília/DF. Poeta, escritor, revisor de textos e servidor público, estudou Direito e Filosofia, com pós-graduação em Língua Portuguesa. Tem vários textos premiados em concursos literários e publicados em diversas antologias e em blogs e revistas eletrônicas, tais como: Mallarmargens, Germina, Zunái, Musa Rara, Ruído Manifesto, Literatura & Fechadura, Samizdat, Portal Vermelho, entre outros. Publicou, em 2012, os livros Humanos (de contos) e Águas de clausura (de poesia — vencedor do X Prêmio Livraria Asabeça), pela Editora Scortecci, e, em 2019, Palavras para estrangular silêncios (de poesia), pela Editora Patuá. É coautor do CD Anand Rao musica poemas de Edelson Nagues (2013, produção independente) e organizador da coletânea Respeitável público: histórias de circo e outras tragédias (2015, Editora Penalux).







Imagens: Hélio Oiticica






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