Cinco poemas de Airton Souza















para Itamar Vieira Junior e todas as orações aos carrascos


salvo a ordem na estrutura das mãos
[há sempre uma indivisível tragédia
na precária estrofe de calcinar amanhã,
o delicado amor entre nomes,
ou madrugadas sem denúncias]
para anotar doloridas citações dentro do peito

ao tentar consolar a dormitada pedra
desenhada em meu ombro
a oração do carrasco, entre vírgula,
reinventa, distante da suavidade, outras estações
ancoradas na triste pátria
ainda anônima no passado eito de meu rosto

não são palatáveis o jeito de dizer: amor
aprendi que o coração, em vez de lírico,
suicida inteiros hectares no objeto flor

permita deus, que amanhã
o amor seja um latifúndio
sem a imposição de provisórios dias
apedrejados na temeridade dos calendários.














 para os mortos de Pau D’arco


para os olhos estendidos no alpendre
há essa casa aberta ao propósito do milagre
& todos os nomes sem rostos
no subterraneamento da fome, perguntam:
como desfazer a efemeridade ossatória
aludida na amargura inquieta de deus?

como ir à guerra, sem ocupar o coração,
com a pragmática dos métodos
e a maneira de não traçar planos
para o destino do inimigo?

é difícil diluir o branco da pedra
guardar a perda e os implantados caminhos
dos que não alcançaram a misericórdia
amanhecida na justificativa bíblica

dentro de mim há uma infância
que pasma perante a metafisica angular
que assassinaram homens e mulheres
em nome da terra e suas solidões latifundiárias

é difícil entender porque a noite
não ensina como inventar o amor
antes do verbo, da carne
e de apertar gatilhos.













 quantas tragédias compõem o arcabouço de um homem?
o pai está morto antes do inverno
a mãe soterrada dentro do desespero
a mulher inevitavelmente está muda
depois da noite e sua triste solidão
o filho que ainda não aprendeu
a consumação da palavra: amor
teimosamente caminha para um rio longe do mar

será que o arcabouço de um homem
é presumível para suportar suas próprias tragédias?

longe do dia inútil
há uma primavera para gestar a desilusão

perto da ferida aberta
há outras geografias nos olhos
revertidas por uma dor sem justificativa

& o homem ainda procura respostas
antes do provérbio devorar
todos os significados da crença em agonia.














Para o poeta Manoel de Barros e todas as coisas úteis que sucumbiram neste país


engendro auroras dentro do amor em todos os tempos
enquanto pássaros recolhem diariamente
a coabitação enferrujada da dor
nos corações orvalhados dos homens

hoje, a vida é enleio
e sua existência não anoitece a palavra amor
antes de avançar contra escurecidos abismos
ferramentados para impedir homens
& suas linguagens inúteis desenhando ódio
de nomear a metafísica do silêncio como verdade

para a inocência das cinzas
que não saberão apalpar a ideia infância
orquestro manhãs e toda a iconografia
de abraçar relentos, pedras e a carne verbal do desamor
essa é uma sintaxe habitada pelo vazio
de comungar depois da solidão dos pássaros

o amor em todos os tempos
é não obstruir concebidos rios
florescidos na carne de homens tristes
que renascerão novamente como crianças que fazem manhãs.












Para as coisas tristes em Brumadinho


como compreender o mar depois da palavra lama?
a lama não esqueceu as casas, os pássaros
& de como acordar outras manhãs longe do rio
antes da caridade milagrar a noite
veio reacender para a fome dos homens

ainda parece pedra o imperativo coração que sonha
enquanto a lama torna sumário o ser que somos
a barbárie mundo não pergunta pelas trucidadas flores
agora incapazes de anunciar a primavera

algum dia será possível sarar a lama
abraçada contra a cidade, o rio e os nomes?

dos corpos que nos faltam
os carrascos dirão que tudo regressará ao pó
[ os ossos diante da fé e da lama são princípios ]

na garganta do dia arrastaremos
o desespero com mais perguntas
porque o dilúvio do substantivo lama
é a impossibilidade do mar em precipício

hoje, nenhum jardim saciará a sintaxe: beleza
em agonia é preciso comungar contra a lama
e recolher do extinto chão, o amor
só ele milagrará alguns orvalhos depois da tristeza.  












Airton Souza – poeta, leitor e ativista. Já venceu diversos prêmios literários e, publicou mais de 35 livros. É licenciado em História (Uniasselvi) e Letras (Unifesspa). Também é mestre em Letras (Unifesspa). Seus poemas já foram traduzidos para o inglês, espanhol e alemão. Além disso, coordena diversos projetos de incentivo a produção literária, entre o quais o Prêmio Amazônia de Literatura e o Projeto Tocaiunas.





Imagens: Hélio Oiticica







Comentários

  1. A poesia militante de Aírton Souza. Suas potentes metáforas, numa catarata de imagens e emoções.

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