Seis poemas de Carla Andrade





Asterisco

Está em casa há décadas
sombras dos pregadores no varal
são passarinhos que a respiram.

O futuro chegou no jornal de ontem
ou da década passada.

Não sabe
se teve filhos
eles não a visitam.

Até a bailarina vai morrer, mas não ela.
É feita de plissês com antenas.

Não sabe desligar a tevê (não escuta)
Tem suas próprias antenas.

Sabe que o futuro já chegou
nada mais existirá
apenas pássaros de madeira
que a respiram.

Há anos atrofiou o canto
como os pregadores no varal.
Quer um carinho nas antenas.
Quer baratas, asas.
Porém, foram extintas.

Se por um descuido do Asterisco, ela morrer
os olhos devem ficar abertos, não fechem.

Mesmo que sua última visão seja a grande caixa:
(os quadrados com pessoas nas caixas pequenas sem varandas)

Os apartamentos sem baratas.
Sem baratas e pessoas quase extintas em caixas.






Leitura refinada do acaso

Já é tarde para estancar os segundos
e tatuar a sua boca na minha
encharquei demais nossas suculentas
e os alfinetes estão nos meus dedos.

Não falaram que não haveria ensaio.
As cortinas de veludo embrulharam-se
como pálpebras.
O caminhão de mudança levou
os abraços no sofá e as risadas no tapete.

Vamos continuar a seguir
truques ensinados
pelo palhaço triste.

No chão que ainda restou
hipnotizo os cones dos Pinus na fruteira
aqueles que atropelamos e colhemos como se fossem a vida.






Instruções de uso de voo de borboleta

Aperte o cinto amarelo da marola da sétima onda
Degole o quarto trevo da sorte
Pouse em pernas sardenhas assanhadas de ilha
Gire em compasso com o espectro rasante
(flores carnívoras, flocos da penugem da ravena ou da neve azulada)
Galope no dorso de um xuri
de olhos esbugalhados bestiais
Até ....
desenrolar o cacho do último anjo

em fila esperando seu beijo






Caixeira viajante

Entre nosso abraço
numa tarde
gorda
suada –
existe
cheiro
pressão
taquicardia
ossos
fingimento
ataduras
feromônios
detenção
redenção
veneração
ciência
e essa santa pendurada
no retrovisor.
Há coisas demais
entre nosso abraço suado
numa tarde gorda.





Estrutura metálica

Da janela os arcos da ponte
sempre parecem menor
e vão sumindo
na velocidade do ônibus e dos tons das 18 horas
tenho medo de chegar perto de suas costelas
e ver que são proporcionalmente do tamanho
dos búfalos vidrados na minha retina.

Se ando na pontas dos pés,
é porque até meus passos têm uma metodologia
fogem do agora com a nostalgia de um ninho vazio

Estou cansada de ser a promessa do comum antes do sono:
a indigestão da rotina, o anúncio de meditação no facebook.
Cansada de ser as roupas costuradas dos outros.

Sem a janela os arcos da ponte
têm mais músculos que costelas
E as trivialidades passam no ônibus e nos tons das 18 horas
Não há desejo de me jogar,
a ponte sou eu
me ensinando de longe
a ser submersa






Minas

Não há mais chaves no meu bolso
E nem mais portas do teatro mágico

Os raros se foram no último barco
para um rio sem valsas

Entrego os olhos ao nada
Como se esperasse uma chama

Sobrou apenas um pássaro na minha mão
E quase o sufoco de vida









Carla Andrade é jornalista e poeta. Nasceu em Belo Horizonte, onde vive hoje. Tem quatro livros publicados: Caligrafia das Nuvens (Patuá, 2017), Conjugação de Pingos de Chuva (LGE), Artesanato de Perguntas (7Letras) e Voltagem (7letras). Inquieta e arteira, morou um tempo na Califórnia, onde tentou aprender até a surfar e falar inglês fluente. Herdou um grande talento da tradicional família mineira: a arte de boiar e atravessar pinguelas.




Imagens: miko59

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