Quatro poemas de Wélcio de Toledo





Ampulheta
já sei
não tenho muito tempo
o mundo se esvai pela tinta maldita da caneta de fonollosa
e eu de carona com rimbaud
também vou


e se vai
não deixa rastros a vida
e quem fica
não ressuscita fantasmas
pois tem mais o que fazer


a vida castiga
quem tenta a fuga e fracassa
prefiro o salto
mergulho abissal na ampulheta
fundo bem fundo em busca do início de tudo


só que o tempo é de estiagem

não consigo ir além da margem






Candangos
anos sessenta 
modernidade que se inventa na boleia bandeirante aterrissando
nos platôs carpidos do planalto central
é muita peia de poeira retirante 
é muito chão
muita solidão na boleia 
é muita gente
frio cortante feito pio de seriema 
a cidade há de lamber suas feridas 
os vincos da velha mesa agora desenham marés recolhidas
chamam a atenção para um horizonte que insiste em perturbar pela pura falta de existência
gotham city esquadrinhada pelo ar rarefeito da capital que há muito
insiste em cegar meus olhos cerrados
onde estou nesse deserto de concreto?
quem eu sou quando estou fora do labirinto de asas e eixos?
para onde vou com esse céu que não me diz aonde estou?
está claro que à frente os vagos sinais levam a um frenesi de falsa alucinação  
é muita luz para nada se ver
a cidade para os que tem estômago
não mais aquela dos que traziam fome 
no embornal apinhado de sonhos
canteiro de obras de arte
artificialidade mundana fincada em sertão monumental
de carona com a utopia
todos os tipos humanos
sagaz engano épica saga
no meio do nada os candangos em sua sagarana
como andarilhos a caminhar com o passado em seu calcanhar
tudo isso se deu num tempo não muito distante
quando extraterrestres aqui desembarcaram 
de galáxias nordestinas

iludidos com a possibilidade de uma promissora civilização






Polaroid para patti smith 


a mulher de meia idade
passa pela rua distraidamente 
paralelo a ela, um comboio de gente marcha solitário
feito um bloco de paralelepípedos vivos
em uniformidade distópica


caminha segura de não saber o que quer
obscuros olhos de neblina
seguem em afronta à claridade produtiva da manhã
não há direção para quem se põe à deriva
tudo segue em sua plena medida
e a caravana acelerada deixa rastros que jamais serão desvendados
pela pessoa que carrega em suas botas 
sinais claros de quem não está aqui para ser decifrada 


mas ela ainda conversa com brecht
ela ainda dança com lorca 
ela flerta com sylvia plath 
faz visitas a burroughs
é cumplice de jean genet 


talvez amanhã alguém se lembre daquele maio de 68 e sua aura esmaecida de 50 anos atrás 
quinze para meio-dia 
de um dia espremido entre e o fim de semana e o feriado
ela vai como se carregasse os bardos antigos nos olhos
inadvertidamente lou reed lhe sopra um quase assovio
um café com torradas enquanto passa em revista ao cinza dos ternos apressados da alameda
sweet jane, oh baby, sweet jane

você sabe, aqueles eram outros tempos






Tripalium – o trabalho do artista


forte como uma mulher
e pronto
sem desculpas para consolar
a eterna necessidade de culpa


intransitivo


o salto pontiagudo 
protossexual
segura a onda 
que arrasta uma bigorna


entorna o torso 
na verga de três paus
a escorar os escombros do capitalismo 
natimorto 


o corpo que não diz
existência sem resposta
promessa 
que em si só já basta para anestesiar 


ferramentas 
amuletos utilidades 
eterna espera 


pedra ferro madeira osso
a forja faz do homem 
um quinhão daquilo que é seu labor
mesmo desacreditando da criação


a arte cobra seu preço em labuta
da matéria vem o pó 
pigmenta a tinta
impregnando de morte o artista 


deus fez o pão 
que o diabo amassou
seu castigo é ruminar
a perda do paraíso


ergoni et ponosi


um mergulho profundo
em busca de aquários
escafandros e

outros dispositivos de imersão

(poemas do livro Tudo que não cabe no poema, Editora Patuá, 2019)






Wélcio de Toledo é poeta, contista, fotógrafo amador e atua em movimentos sociais e culturais de Brasília. Inconformado, revoltado, anarquista que acredita no caráter essencialmente libertário da poesia. Poesia é força motriz priapicouterina. Literatura é trabalho que lhe tira sangue, suor, sêmen. E o poeta um cara que trabalha com poesia. Quando a esperança com a literatura esgotar, coisa que está próximo de acontecer, espera arregimentar alguns inconformados para montar uma guerrilha alienígena e libertar o povo incauto dos males que o vampiro temeroso assexuado propalou pelo país.
Imagem: Stephen Butler

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